terça-feira, janeiro 06, 2009

Depois dos bombardeamentos

I.

Não esperamos acordados um pelo
outro, mas ainda nos cruzamos de raspão
calando prejuízos entre a emoção e o sexo,
quando afinal só já apagamos cigarros
na pele fria um do outro.
Não foi sempre assim, mas não sei
se queres recordar-te dos aviões de papel
que foram pela janela, e de nós dois, despidos,
assistindo aos bombardeamentos.

Acorda-me
um vazio às seis e um quarto da manhã,
embrulhado em suor. Faço chá de camomila
como me ensinaste, ligo
e desligo aparelhos eléctricos, tiro
um livro, puxo o aquecedor e sentado
espero os animais que ainda nos vêm madrugar
no colo, domesticados a partir
do silêncio. Passo a mão no pêlo
do primeiro a chegar, solto-o, deixo-o passear
no princípio de uns versos, aninhando-se
mais à frente numa metáfora.

Ainda penso em meter-me na cama, mas paro e olho
o escorrega, os baloiços e o pequeno carrossel
no recreio do teu corpo. Hoje vou insistir
que sinto a tua falta, mesmo que soe
repetitivo ou até piroso. Que mal nos fará?

Quero que saibas que te apertei
com cuidado alguns segundos antes
que amanhecesse
e a luz viesse ofender as simetrias
que inventámos durante a noite.
Molhei as mãos uma última vez
no escuro, escrevi-te um até depois
e fui para as aulas.


II.

Às onze horas já mal levantava a cabeça,
pedi desculpa à sôtora, não estava a prestar
atenção ao caso prático.
Entre as anotações no código civil
teci toda uma rede de traficantes, personagens
com um cadastro invejável, contratando
serviços ilícitos. Um tear de lendas e proezas,
estruturas e pontes bem altas
de onde passo as manhãs a atirar-me.

Lá para o início da tarde e depois da última aula,
apesar de tudo, ainda acho que me sinto melhor
entre futuros advogados, nervosos e muito
direitinhos nas cadeiras, do que no meio
dos nossos quase famosos literatos, cada um
com o seu escadote. Imagino-os
ali ao lado, na de Letras,
a saírem e a entrarem de umas salas
para as outras, as agendas preenchidas
de tertúlias e sessões de escrita
criativa… Por favor, analise-me isto,
hum, sim e o que acha que o autor
quis dizer com aquilo?, claro,
mais alguma coisa?

Não tenho o suficiente para certezas,
mas penso que além de virar as costas,
talvez o único acto poético que resta
aos do nosso tempo
seja passar algumas das tardes
em que damos por nós assim,
sem melhor que fazer,
roubando livros na fnac.


III.

Hoje vou levar-te um do Pablo Neruda,
sonetos de amor e tal, já que não tens
muita paciência para os “poetas tristes”
de que eu gosto tanto.

2 comentários:

Daniel Abrunheiro disse...

Que bem. Que bem feito, isto.

Abssinto disse...

Gostei muito.