terça-feira, dezembro 30, 2008

À disposição

Eu, aqui, a beber leite achocolatado,
calmo, folheio o Fallorca, também como ele
num pequeno quarto onde apodreço de solidão.
Atravessa-me desde uma idade que não sei
uma vaga melodia, algum velho aparelho de k7’s
que deixei ligado, algures,
junto à minha infância. De longe
chega-me ainda o latido de cães que
talvez já nem existam e gritos dos outros
putos que me deixavam jogar à bola, até o trânsito
se adensar mais ainda
aqui ao lado, no eixo norte/sul. Aí,
buzinando, enxotam-me as memórias
que estive toda a tarde a colar,
e fica comigo apenas um silêncio ferido,
uma coisa enorme sem nada para fazer.

Pouco importa, mudemos de assunto.
Entretanto volta a piscar-me o olho
aquela insatisfação que distingo cada vez pior
da sede que vou tendo. Visto-me, recolho o meu
pequeno mundo nos bolsos e vou atrás
do primeiro néon que se acenda
no caminho.

Posso jurar que ando perdido.
Meto-me por ali e depois viro e peço indicações
para merdas que ficam no estrangeiro.
Bebo uns copos à saúde do Manuel Alegre
e de outros grandes vultos da rima nacional.
Espalho-me à saída de um café, vomito
num beco, sinto a mão
do Ginsberg apalpar-me o rabo à entrada
de um bar. Confundiu-me com outra pessoa,
ou então a confusão foi minha, que importa?
Coisas assim acontecem amiúde
nestes sítios, cafés e bares
tripulados pelo que ainda resta
de marinheiros, putas e sereias nesta cidade.
Tantos corpos cedidos a nenhuma história,
partilhando como podem um gosto
por fins de tarde com chuva,
cerveja e rock de outras décadas.

Escolho uma cadeira, sento-me,
depois mudo de lugar, fico horas (se for preciso)
a olhar para uma gaja, e às vezes canto
baixinho musiquinhas ordinárias,
até ela se deixar de sorrisos e começar
a ficar assustada. Entretenho-me
com coisas dessas que fazem os maluquinhos.

Enrolo fita-cola ou interrogações peganhentas
nos dedos. Abro um dos meus cadernos e dói-me
passar pelas folhas e sentir que nem uma linha
se salva. A verdade já alguém a escreveu à faca
numa destas mesas, em dois ou três versos
que ficaram para a troca,
frases que nos marcam até certa altura
e em torno das quais
nos desfazemos em redundâncias
e ruas escuras, destas sempre a subir.

Para me sossegar tomo a sugestão de pudor
nos gestos de quem me rodeia, a carência anónima
e a ternura que envolve estas mortes mínimas.
Agora o que não posso é explicar toda esta tristeza,
é difícil, mesmo porque a poesia
o mais que faz por nós
é às vezes dizer – não vás por aí. Ou então
vai, mas não contes comigo…


Estamos mesmo a acabar, debaixo desta luz
desinteressada que nos colora a pele, juntos, quase
dissolvidos, rodamos com todo o cuidado a cabeça
para olhar quem vem e quem vai. E é isto
só, a vida anoitecida e todos os lugares
que vão ficando à disposição
da lembrança.

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