segunda-feira, dezembro 15, 2008

Biografia

Este poema foi publicado e republicado em todas as versões intermédias que foi tendo. Republico-o mais uma vez para incluir nele duas partes novas, uma já antes publicada em separado e outra inédita.

I
(o sangue)


Sou bisneto de um tal Ishmael Veilchenduf,
judeu, que em tempos negociou peles de animais exóticos
e bibelots de cristal algures nas margens do Vístula,
privando ocasionalmente com a alta sociedade de Varsóvia.
Diz-se que deu à primeira filha o nome dos sonhos que
ficaram por cumprir, quebrando com isso uma linhagem
milenar de princesas de sangue negro, o que nunca foi
verdadeiramente perdoado pelas mulheres da minha família,
habituadas a quase tudo desde que não envolvesse um pouco de decepção.
A minha bisavó, conhecida por Mary B no seus tempos de prostituta,
nunca voltou a observar-se ao espelho depois de casada,
talvez por medo aos demónios ou simplesmente a ver-se demasiado gorda.
Mas o meu sangue andou por bordéis no norte da europa e participou
activamente na compra e venda de carne tão branca que no
passado teria sido considerada aristocrática e enferma.
A minha irmã, de nome grego e impuro, escolheu ser vegetariana
em forma de protesto para com a ascendência de judeus
bárbaros através das mãos, obcecados em sangrar
pequenos animais peludos até à última gota.
Tem, tal como eu, os olhos verdes e toda a espécie
de amor que eles podem conter, herdados de uma mulher
que não cantava suficientemente bem como para enganar
a vodka e outras certezas num café perto da Syrenka.
O meu bisavô Ishmael apreciava várias espécies de miudezas,
grelhadas ou fritas em azeite virgem importado de Espanha
pela Sociedade Guzmán&Hijos com domicílio social em Barcelona.
Talvez por isso eu tenha o cabelo desta cor que vem de dentro,
como o sangue que me escorre dos lábios em noites de violência.
Sou excelente como carnívoro, sustentado a músculos, tendões e,
com um pouco de sorte, corações de animais que a minha raça
já chegou a considerar como irmãos nos tempos de C. e outros idólatras.
Um dia vesti um casaco de zibelina da minha avó Esther
e exagerei na pintura dos lábios com o ciclo de sangue
da minha irmã mais nova, detentora de bonecas
associadas à decadência erótica dos nossos tempos.
Atravessei a cidade de uma ponta a outra só parando para comprar
pão de mistura e um volume das Obras Completas de Sully Prudhomme
para curar a febre do Nobel contraída com um século de atraso.
Eu caminhei lado a lado com Enoch. Meus Senhores, foi isso que consegui
em vez de me sentar na cadeira do meu pai a escrever um poema
sobre aquilo que Pilatus disse aos judeus formalistas no lugar em
que os inimigos de César eram crucificados.

III
(os ossos)


Quando eu nasci, as mulheres da casa sustiveram
a respiração e os soluços, convencidas que o primeiro
neto de Mrs. Veilchenduf tinha regressado
ao convívio dos homens sem possuir
o eterno dom das lágrimas.
A minha auréola de luz foi cortada e,
por isso, nunca hei-de ser um anjo,
mesmo que dotado de asas, muito embora
para voar um judeu apenas precise duma
chaminé e um par de senhores alemães
relativamente bem dispostos.
Foi no ano de 1985 e, nessa época,
o meu pai começava a desconfiar
que a viagem da Hannah Arendt a Jerusalém
fora uma espécie de desculpa para apagar
o cheiro de Martim Heidegger de entre as pernas.
No entanto, eu sou exactamente assim,
um paradoxo existencial apenas possível
na transição entre séculos: casaco com braçadeira
envergando uma estrela de seis pontas
e estados de espírito a fazer lembrar a Meinkampf.
Em tempos a minha barriga seria aberta a sangue
frio apenas porque sou judeu e, como tal, devo ter
nascido com o hábito engolir diamantes ao pequeno-almoço.
Hoje o conteúdo do meu estômago é tão ácido
que apenas sobrevivem nele estas pedras
cuja ruína simboliza a queda do Templo
e quaisquer outros propósitos de elevada estatura.
Sou o cisne negro que poisa no porto
em que o meu espelho com acabamentos de prata
foi embarcado para África, mas tudo me parece
tão aborrecido agora que esta morte à distância
é semelhante a qualquer outra forma de transatlanticismo.
Deus já não é aquele Deus despido a que o meu avô
Me ensinou em segredo a rezar.
Talvez merecesse ter bebido água dos chuveiros de Auchwitz.


III
(a cinza)


É tradição entre os nossos acreditar que para lá do
oceano fica uma terra que nos foi prometida,
onde um rei pode ser encontrado a caçar animais
cujas peles brilham mais que o exército de Tito
a marchar passo a passo sobre o deserto.
Não sei que nome lhe dar – não sou Amerigo Vespucci –
ou talvez ainda nem sequer o tenha, talvez sejas só tu
a tentar convencer-me a escrever mais um poema
sobre uma frase marcante daqueles livros devidamente
encadernados na nossa pele. Não importa.
O tempo flui como o tráfego na cidade com que em tempos
sonhámos e todos nós, mais tarde ou mais cedo, teremos a felicidade
de encontrar uma terra santa para deitar o corpo e morrer.
Das aufgeschriebene Vaterland. Não importa.
Todos nós construímos jardins inconstantes à volta da alma,
já que nos é impossível procurar neles um vento de Novembro
agora que dirigimos o olhar a leste, à procura de um coração
totalmente negro numa esplanada em Hierosolyma.
Lusignan, senhor do Chipre a cavalo, abandonou
estas paragens faz já tanto tempo, nos dias que antecederam
a queda de São João de Acre ou outra cidade santa qualquer.
Desde então, o meu sangue é preto, herança genética da tinta
que te ficou agarrada às unhas ao ensinar aos nossos antepassados
que a fé é tão duvidosa quanto o altruísmo de Rudolf Kastner.
Mesmo assim trago na boca as palavras do livro da lei,
apesar de ter havido tempos em que me furtei a meditá-las
dia e noite. Hoje sei que lei é a casa do ser e nesta habitação
do ser mora um homem cujo olhar foi atravessado
por um relâmpago. O meu nunca foi.
Senhor, já não sinto o pulso ao meu sangue, os seus lábios estão
pálidos e quietos como os de um morto em pleno convés.
Senhor, já não sinto o pulso ao meu sangue e era tão imenso o meu sonho,
mas os seus lábios estão pálidos e quietos.

IV
(o cântico)


Negasses-me o incenso da tua pele as tuas rajadas Elevação
superior à morte.
Através do mar que em teus seios nasce Mar onde eu afogado
Sempre te amei.
Faz-se um cometa entre os teus dedos e a corrente impede-me
de avançar Fiquemos tristes, fiquemos
presos nas tuas rajadas Elevação
eu fantasma que sempre te amou.

Ruiva e eterna escrava do Sinai de olhos
vazios como um diamante comprado na Pelikaanstraat.
Observa-me altíssima que rubros são teus filhos
do metal nascidos
contra o sangue que me corre nas veias revoltados
nunca escolhidos.

Tu aquela que sugou o meu astro, dá-me de beber
o que carregas na boca
por baixo da língua. Porque hei-de ser a expiação
o anjo caído no centro da terra onde se respiram as areias?
Sei que tens mau sangue ó mais dispendiosa das mulheres
não esperes por mim
perto dos rebanhos que enquadras como a morte
como o teu ciclo de sangue.

Tu demónio que puxa o carro do Portador como
demónio nascido dentro de mim te invoco.
Embelezam os teus dotes o fogo e o grifo que te adorna
como um rastro de medo.
Sangue real é servido em tua honra e as estrelas
rematam a minha derrota.
Quando a corrente desatar de nardo se vai adornar
o leito da tua brancura judaica.
Entre os meus dedos o sangue a linfa o vinho
e eu que sempre te amei não terei descanso.
Eu que sempre te amei hei-de semear a tempestade
e os pássaros de asas negras obedecerão a Azazel.
Ó meu inimigo assumido em silêncio suave é o toque
desta espécie de morte.
Vigia o meu templo sem paredes chamado Devoção.

Eu orquídea nascida nas areias do Negev de pétalas tatuadas.
Como a orquídea rodeada de sede assim me vês amante
cujos filhos fazem brotar da terra a própria luz.
Assim vês Teus filhos nascidos do metal irreverente
Elevação qual forma impura.

Tu sombra amaldicionada nos espelhos Escuro é o teu desejo
o canto O silêncio e o ciclo de sangue das tuas filhas.
Adormece-me pois que estou doente de amor
fraco da garganta em teu regaço. Ó essência de amêndoas
o meu fruto a minha tortura Sempre te amei e És tu.
Soubesse o amante erguer-me de entre as flores
e ser-me-ia possível possuir esta verdade
a história de como corpos se transformam em diferentes corpos.

Mulher nascida em Jerusalém num dia vermelho
pelos animais que cruzam o deserto todos as noites
não me envolvas eu que sempre te amei não me envolvas
em teus ébrios segredos Elevação qual forma impura.
O invernos vêm e vão sucedem-se Eterno é o frio
da tua ausência Salomé.
Lisases são os teus lábios, os teus olhos de espelho
Os teus seios brotam como nascidos da terra Eis que chegou
o tempo das rosas eis que o vento de Novembro sopra
desde as colinas de Baal-Hermon o lugar da transformação.
Deixo os meus olhos nos teus aí não teremos frio
neste corpo vive Lilith que brinca com espelhos
pede Pede que todos os dias dances para ela Salomé
e os teus filhos expiarão com sangue a tua altíssima culpa.

Negasses-me a tua essência
O vinho que me inicia nos mistérios de Hattin
Elevação na sua forma mais impura.
Eu que sempre te amei qual fantasma que habita
em silêncio as grutas do Negev seu Lírio dos Lírios.
Dança em meu redor Rosados são teus lábios
eis que chega a hora em que os surdos ouvem Dança
e rápido serás superior à morte Dança
Elevação qual forma impura.

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