segunda-feira, novembro 03, 2008

Biografia (parte I - o sangue)

Sou bisneto de um tal Ishmael Veilchenduf,
judeu, que em tempos negociou peles de animais exóticos
e bibelots de cristal algures nas margens do Vístula,
privando ocasionalmente com a alta sociedade de Varsóvia.
Diz-se que deu à primeira filha o nome dos sonhos que
ficaram por cumprir, quebrando com isso uma linhagem
milenar de princesas de sangue negro, o que nunca foi
verdadeiramente perdoado pelas mulheres da minha família,
habituadas a quase tudo desde que não envolvesse um pouco de decepção.
A minha bisavó, conhecida por Mary B no seus tempos de prostituta,
nunca voltou a observar-se num espelho depois de casada,
talvez por medo aos demónios ou simplesmente a ver-se demasiado gorda.
O meu sangue andou por bordéis no norte da europa e participou
activamente na compra e venda de carne tão branca que no
passado teria sido considerada aristocrática e enferma.
A minha irmã, de nome grego e impuro, escolheu ser vegetariana
em forma de protesto para com a ascendência de judeus
bárbaros através das mãos, obcecados em sangrar
pequenos animais peludos até à última gota.
Tem, tal como eu, os olhos verdes e toda a espécie
de amor que eles podem conter, herdados de uma mulher
que não cantava suficientemente bem como para enganar
a vodka e outras certezas num café perto da Syrenka.
O meu bisavô Ishmael apreciava várias espécies de miudezas,
grelhadas ou fritas em azeite virgem importado de Espanha
pela Sociedade Guzmán&Hijos com domicílio social em Barcelona.
Talvez por isso eu tenha o cabelo desta cor que vem de dentro,
como o sangue que me escorre dos lábios em noites de violência.
Sou excelente como carnívoro, sustentado a músculos, tendões e,
com um pouco de sorte, corações de animais que a minha raça
já chegou a considerar como irmãos nos tempos de C. e outros idólatras.
Um dia vesti um casaco de zibelina da minha avó Esther
e exagerei na pintura dos lábios com o ciclo de sangue
da minha irmã mais nova, detentora de bonecas
associadas à decadência erótica dos nossos tempos.
Atravessei a cidade de uma ponta a outra só parando para comprar
pão de mistura e um volume das Obras Completas de Sully Prudhomme
para curar a febre do Nobel contraída com um século de atraso.
Eu caminhei lado a lado com Enoch. Meus Senhores, foi isso que consegui
Em vez de me sentar na cadeira do meu pai a escrever um poema
sobre aquilo que Pilatus disse aos judeus formalistas no lugar em
que os inimigos de César eram crucificados.

1 comentário:

Artur Corvelo disse...

com uma biografia (familiar) dessas também eu :o