talvez seja tempo de deitar toda a música fora;
entenda-se: a música que insisto em ouvir,
iludido por uma extemporânea fraqueza,
uma ingenuidade fingida.
Passo os olhos pelos poucos CD's que resistiram ao massacre -
o esquecimento. Não me parece que Ian Curtis
viva tanto como J. S. Bach; a urgência
de brevidade dispensa o uso do génio,
apenas necessita daquela rápida violência
de uma rajada de beats, limitada imitação
de um coração disparado contra coração.
Contudo, ouço com mais atenção; e na
líquida acomodação dos sons à estrutura
de uma pauta, fluindo sobre um fundo
branco que se despiu de qualquer ideia – variações,
transcritas para um conjunto de cordas vibrando
na ordem certa – detecto um ritmo
terrestre, soando desde um tempo primordial e intenso.
Keith Jarrett, cansado de converter a sua energia
a notas escritas por outros, dedicou sessenta e seis minutos
e oito segundos (assim indica a gravação que agora toca) da sua vida
a esquecer Deus e a inventar a música – começa como um rio
e avança como uma tempestade (pobres figuras de estilo), termina
como a viagem de uma partícula circunscrita ao desenho
invisível do tecido cósmico; caos hesitando na geometria das teclas,
diagonais traçadas sobre uma sala vazia, e a noite voraz e calada.
O músico que antes ensaiou uma aproximação à pauta de outro,
agora bate e bate e bate sobre o chão vulcânico,
e nenhuma nota se comporta como se estivesse presa por fios -
disparam em todas as direcções e regressam e partem
de novo, entre o movimento das mãos
e o reflexo da cabeça, sons que é mais certo
nunca terem existido, que não esperam uma unidade,
matéria e esquecimento.
E penso:
a música fora?
Os documentos, a minha identidade convexa,
mas nunca a pegada de Deus no mundo.
Calo-me. E deixo-me ouvir, entre silêncio,
o sentido.
- Sérgio Lavos
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