Acontece quando mais o esperamos:
um punho bate à porta,
não se trata do carteiro
nem da juventude. Diz-se
da família. Vem para ficar.
Começa por brincar às escondidas
com os nossos pensamentos.
Acorda-nos de noite, diverte-se
a romper as sapatilhas,
deixa frascos de formol
sobre a mesa da cozinha.
Primeiro, não sabendo o que fazer,
tentamos distrair a sua fome,
mostramos-lhe o relógio,
passamos-lhe a carteira para as mãos,
os botões da gabardine, os anéis.
Por último, os dedos.
Neste passo, depressa nos convence
a tratá-lo por senhor, a ceder-lhe num sorriso
a cadeira do avô, o telefone
dos amigos, a vista da janela.
De cabeça descoberta
servimos o jantar.
Com o tempo percebemos:
quer vestir-nos do avesso,
forrar de vento norte
a gola dos casacos, levar-nos a dizer:
“há nas folhas do Outono vivo lume,
que faço eu em minha casa?”
- José Miguel Silva
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