quinta-feira, maio 22, 2008

Sweet murderers of men

I.

Há algum encanto no jeito impiedoso
como a meio de uma primavera se abate
um dia assim, num feriado nacional.
Todos sabem que trabalhar cansa,
mas mais que isso cansa-nos
ter que aproveitar um dia de sol
e insuflá-lo com alegrias e utilidades.
O mau tempo dá-te uma boa desculpa
para ficares arrumado a um canto,
imerso na leitura dos poemas narrativos
do Pavese. E não precisas de acrescentar nada,
melhor que tu, a chuva sabe desenhar
nas janelas o borrão completo
destes afundamentos. A tarde fastidiosa
aluindo sobre a secretária, essa ilha perdida,
essa jangada onde derivas sem destino
num longo suicídio.

Numa hora destas alguns morrem
fechando simplesmente os olhos
enquanto tu puxas fogo a uma imagem
de mau gosto, acendes outro cigarro
e perguntas-te se te apetece ouvir música
ou ficar só, molemente, remendando abismos,
adornando vazios com a tua série
cada vez mais limitada de sentimentos
e pequenas ou frouxas razões.

Alguém haverá de telefonar-te
ou pedir um pouco de atenção.
(As pessoas habituam-se muito mal.)
Vai querer saber como estás e outras coisas
que tão pouco lhe interessam,
camuflando mal a falta de motivos
para interromper-te por momentos
a comiseração dos versos.
Não há intriga, enredo, nada realmente,
apenas a suspeita de que ninguém
sabe o que fazer à vida.
Mas não falemos dos outros,
afinal, pode ser que exista o amor
e tudo o resto, e talvez sejas só tu
que enjoas mais depressa que eles.


II.

Hoje não será dia para grandes esforços,
nenhum gesto galante ou um sorriso
desferido como uma lesão no mundo.
Sem alarde, os olhos como dois coágulos
tomam conta de insignificantes oscilações,
deixas-te ficar com a cidade
enquanto a luminosidade estéril
se enforca e as ruas são entregues
à lavagem nocturna. Surgem pacientes
os primeiros corpos lucrativos, esperando
todos os outros, como o teu, corpos
que vêm à desgraça, ao dispêndio
ou desgaste das perturbações da pele, solidões
de uma histeria colectiva entre outros malefícios
tipicamente urbanos.

Agredidos pelo silêncio, com os pés mordidos
por sombras de todos os tamanhos, seria bom
se degenerássemos, se alguém nos levasse
a não pensar, a esquecer esta noção
de estarmos encomendados pela morte.
Reunidos em buracos apertados e esconsos,
parece que conspiramos, mas não,
não temos nem estratégia, nem um plano e havemos
de nos render sem dar luta, sem nenhuma honra
ou orgulho. Noite sobre noite
trazemos esta doença sem cura e pagamos
a quem nos sirva pomadas, alívios
dermáticos, um encosto qualquer
o mais próximo possível da inconsciência.

Tu já desististe até de simular algum medo
que pudesses ainda ter de te estares a repetir.
Não havia e não há nada a dizer -
estas são apenas linhas a giz, contornos
de um cadáver que vais largando no pavimento.
Depois hão-de passar-te por cima, os dias,
as noites, a própria chuva irá borrar e por fim
limpar isto. Mas se preferires ver as coisas
de um outro modo pois fecha os olhos
e deixa-a abraçar-te e conduzir a dança
em vez de vir só no final do baile,
apagar as luzes e ceifar-te simplesmente.

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