quinta-feira, abril 24, 2008

Retiro de ofendidos

Em vez de cortar os pulsos
cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite
para lhe perguntar por que não tocas.

José Miguel Silva

Passou tempo suficiente. Perguntei a muita gente,
quis saber o tempo médio que uma coisa destas demora
a passar. Lembro-me que há uns dias parecia estar tudo
como deve ser, ao deitar-me bebi um copo de leite
e acho que entrei no sono pela porta certa. Mas pouco depois
ainda era ela, ou pelo menos o corpo dela,
o pior dos meus motivos para continuar a fugir.

Dos corpos que sei aqueles que se entregam à noite
já não são devolvidos, não em bom estado.
Esperámos em vão nos recintes do costume
por um comboio nocturno com destino
ao esquecimento, perdemos demasiadas vidas
e o amor, esse dos filmes, não terá sido mais
que uma névoa entre o torpor alcoólico,
debaixo da tareia de um ritmo alucinado que
contrastou sempre com a expressão previdente
do céu. Sentíamo-nos estranhos face a nós próprios,
espiados por um melindroso luar.

Hoje o corpo é um vaso de flores secas, sepulcro
de cores e boas intenções. Reparte-se entre distâncias
menores, verga-se sob a deplorável evidência
da sua extinção, ficando para ver como se desenvolve
a doença degenerativa de ser só isto, uma frágil estante
para arrumar vícios e um aterro para a vergonha
de cada ânsia, cada sinal em que nos excedemos.
É vulgar e maçadora esta dependência da morte,
eu sei, mas o poema também não é mais
que uma renúncia ou então um junquilho que se pisa
ao passar. Já não consigo voltar a casa tão tarde
como antes. Qualquer encanto tem uma resistência
breve e também já não me sinto bem entre nómadas
ensaiando poses a favor de medos desnecessários.

Ontem aguentámos até ao fim embora muito do tempo
se tenha gasto de lá para cá na linha difícil entre o balcão
e o urinol. O salão estava à pinha e, procurando
o mínimo contacto possível, senti como já não sentia
há muito tempo a impressão de não passarmos
de figurantes numa transmissão em diferido
de um programa sobre qualquer coisa alegre
que nos terá passado ao lado. Esvaziou-se
a vida inteira de alguns cigarros enquanto
uma injusta juventude se cansava bailando
ao som do acordeão, lambuzados de saliva
e mais promessas, pareceu-nos um clip
terrivelmente cómico (depois da quinta imperial)
em que rimavam de uma forma tão gratuita
versos de engate o menos subtis possível.
Ficou assim tão fácil fazer render
as princesas no seu jogo, abreviando-lhes o falso
decoro. Porque, afinal, já se sabe que ninguém
sai de casa e chega ali porque está a precisar
de algum sossego.

Talvez entre nós houvesse quem tenha feito
as suas contas e quisesse regressar a casa
com facturas, mas a noite dá sempre menos
do que tem para dar. Pagou-nos uns copos,
fez-nos trocar números e perceber que depois
de um sorriso forçado, amanhã não teremos
muita vontade de ligar.
Fértil em desencontros, desarranjos e gracejos,
corridinhas de um lado ao outro destas pontes ácidas,
ainda assim não nos leva a lugar nenhum, a fraca intensidade
das luzes. Serve para uma alquimia de tristezas
que será convertida em pouco mais que soluços
por cima do choro cansado
a que os nossos olhos se habituaram.

Não vou dizer-te como a noite não acabou.
Voltámos para casa e apesar de tudo, de uma volta
mais longa, ainda tive que a encontrar com outro.
Falei com ele e, mesmo sendo o meu sonho,
pareceu-me um tipo porreiro. Não há nada a fazer.

1 comentário:

Abssinto disse...

Os teus poemas são uma inspiração. Parabéns pela excelente crítica do Manuel de Freitas à Criatura, que li agora quase em paralelo no blog.