domingo, abril 20, 2008

Foi tudo em vão, novamente.


Though I know that evenin's empire has returned into sand,
Vanished from my hand,
Left me blindly here to stand but still not sleeping.
My weariness amazes me, I'm branded on my feet,
I have no one to meet
And the ancient empty street's too dead for dreaming.


para a Patrícia


Os guindastes por trás deste cenário estragam tudo,
deixando antever o princípio de múltiplos acidentes.
Chega-nos um assobio de longe, como um gradual despertador,
processos sonoros de um ofício que não se deixa interromper
e aproveita mesmo as horas mortas. A indústria dos afectos
e outros métodos de enganar a solidão, coisas que nos fazem
resvalar para infelizes fins de ruas
e os becos em que todas as guerras vêm arrefecer.
Assiste a isto, sem bater palmas, a esparsa guarnição
de vultos, amparados pelo néon das roulottes, alguns balcões
onde não nos servem outra coisa a não ser aperitivos ou complementos
para os tons claros e medíocres que o sol há-de intensificar.
São estes os redutos onde calhamos sem acalentar projectos
nem futuros, só alguns golpes na lucidez que outras paredes
não nos raspam da pele.

Tenho-me esforçado demais e talvez
não me consiga explicar melhor. De novo,
deixem que reformule: É apenas isto e é tudo
o que nos resta, este
modo
de andarmos perdidos.

Acordará entre sonhos mal apagados, fungos tipicamente
domésticos, a resina que pega algumas fotografias tipo passe
às traves da cama. O baldaquino está há muito desfeito.
Vai pisar descalço
sobras e detalhes,
uma colecção de coisas que vêm agarradas ao corpo
no final de cada dia. No centro da única mesa da divisão seguinte
o atendedor de chamadas e ao lado a garrafa e umas instruções
sobre a recondução desse corpo ao desespero.

As ruas sabem partilhar a sua falta de segredos,
como a de qualquer peão que queira testar nelas
a sua invisibilidade.
Soletra outros nomes, a vegetativa companhia
das árvores, põe a mão sobre a casca e admira-as o melhor que sabe,
ao mesmo tempo que tenta perceber o que se mantém
para lá da imperfeita renovação das estações.

Toma café e mais nada no lugar de sempre, não compra o jornal
mas escolhe um entre
vários postais com edifícios e monumentos
de capitais europeias às quais não irá levar-se. Tem na perda
de tudo o que nunca lhe irá acontecer
um apeadeiro onde se despede do que quer que seja
e alguns comboios avariados, maquinaria obsoleta, uma alma
que se tiver que incluir uma metáfora
basta-se bem com a imagem do ferro velho.

Diz quem é aos outros pelo que gostaria de fazer: ser carteiro
ou comerciante de livros antigos e edições raras
(sobretudo peças musicais), mas trabalha
numa secretaria metendo no arquivo ordens de despejo,
licenças de construção e outras emergências
para as quais é preciso tirar senha
e esperar que o poema termine para levar um carimbo
no impresso.

Tem pouco para si, os cigarros, um coração telegráfico
sem itinerário, deixa-se embriagar nos fins-de-semana
e o casaco de malha que gosta de repetir
recolhe um caderno de endereços
e desenhos a carvão. É aí que imprime a perspectiva distante
de mulheres que, sem o saberem, são seguidas
pela sua presença zelosa e discreta
assegurando que regressam a casa em segurança.
Sabe a cor que aquieta o mundo. Por trás
do azul das vidraças alimenta uma flor solitária,
rega-a com algum pudor e desencanto, por vezes
o desacerto de um entusiasmo triste - a única beleza
que o descansa. Isso ou um verso que descerra
no silêncio, fruto da sorte, premiando
este vício natural.

Houve tempos em que pintava a sua falta de noções
com guache e aguarelas. Um dia pareceu-lhe ver uma criança
educada entre lobos, que meio desprotegida
defecava nas traseiras de um açougue
olhando tensa em seu redor.
Os seus olhos continham uma ameaça selvagem,
um veemente sinal que devia traduzir-se por
«não te aproximes, senão». Tentou aproximar-se pintando-a
e falhou várias vezes. Deixou os pincéis, deixou-se
de artes sérias e limitou-se a pôr afixos nas coisas,
curtas legendas e notas desnecessárias.

Comigo discute apenas os meus duvidosos gostos
em relação a mulheres. Ele prefere-as feias.
Mostra (como eu, por vezes) um completo desinteresse
por essa poesia sem nenhuma realidade: Já de si inútil
a poesia se não é real ao menos deveria merecer
uma irrealidade que se tornasse palpável, mas os génios
mais facilmente se cansam
do que se lembram de reinventar o mundo. Pronto,
está muito bem.
Em frente à lareira embrulhamos maus poemas em acendalhas
troçamos de quem se vê que (sem hesitações) daria o cu e oito tostões
para aparecer nessas diárias antologias para preguiçosos.
Menos vergados estamos a pensar
em deixar de escrever poemas e endereçar apenas
longas cartas ao silêncio. Para já não,
ainda é muito cedo para fingirmos
uma humildade sincera e completa, um dia
quem sabe.

Amanhã estaremos de volta. Fixos nessa saia, exagerando
nas cores mas acertando no balanço, o satisfatório movimento
de umas ancas. Deste lado tudo o que nos falta para atingir,
quase, quase, um último gesto eloquente, a mão
que avança para tocar-lhe mas que
(em bom tempo)
desiste.

1 comentário:

Anónimo disse...

"a indústria dos afectos" tem as suas regras de mercado... e se "foi tudo em vão" é porque a regra principal foi cumprida. parabéns pelo poema, diogo!
e obrigada pela dedicatória!