Melhor seria que não me lessem nunca
os que por costume lêem poesia.
Muito além deles conseguir falar
ao que chega a casa e prefere o álcool,
a música de acaso, a sombra de alguém
com o silêncio das situações ajustadas.
em que me sentia mais inclinado para a troca
de promessas, esse malabarismo de identidades
e a busca de atalhos na falta de sentido do poema.
Agora já assumo que tudo isto é tempo que perco
divagando, trocando moedas por bilhetes
e preferindo o lado da janela nos transportes
públicos. Se vieres comigo és mais idiota que eu.
O que é que ainda não se disse
sobre o tom cinzento desta cidade? Hoje,
como ontem e anteontem, desenho
com menos precisão um escaravelho egípcio
enquanto imagino outros artifícios
que se assinalam entre estas paragens.
Cada um saberá no que pensa ao riscar
outra folha do calendário.
No primeiro recato haverá alguém
recomendando que puxe uma cadeira
sobre esta agonia de termos ainda
uma vida inteira pela frente e nenhuma distância
que se justifique. Há sempre quem se faça
passar por velho, quando a vida nos rende
todos muito jovens à morte. No fim o que varia
é a experiência com coisas que se servem umas
às outras, a misericórdia de algum engano,
ainda que de curta duração, um rostro
que mais facilmente se prenda num sorriso
enquanto as mãos, menos hábeis,
mal se ocupam rodeando porções individuais
de nada. As nossas distracções consumíveis,
pássaros de fuligem quedos no tampo
das mesas com os corações espetados
por palitos e o sangue frio em volta,
de alguma imperial que só por descuido
foi derramada. A estes pássaros sem céu
abrimos o bico com a chama do isqueiro
e para lá deitamos migalhas e peles soltas,
sentimo-nos gentis e até prestáveis
praticando actos que não significam nada.
E a tarde sabe perder-se entre medições
sem objecto, gestos de antecipar
qualquer fim.
Não era uma pergunta para uma tipa qualquer
mas para todos nós, o «How does it feel?»,
e a resposta é - mal, cada vez pior. O corpo
está embotado pelo desacerto
meteorológico, ainda se confunde
na direcção para casa com aqueles
que esperam pela hóstia para educar
uma devoção, unindo as palmas das mãos
para um deus que não se cansa
de brincar às escondidas.
Infelizmente hão-de sobreviver-nos
todos estes templos
e a soberania deste vício, essa fé
que sem desencadear nada de novo
enterra qualquer paraíso e deixa-nos
apenas um medo cego do escuro.
A moda social faz ajustes legais para todos
seguindo a tendência destes corpos,
relíquias da morte, entregues a contínuas
procissões pelo inferno. Uma exigente rotina
que nos obriga a arder. E assim,
sem outra possibilidade,
o último significado das palavras
cinge-se aqui, neste escaninho
paredes-meias com o silêncio.
2 comentários:
Muito bom, D!
Já leste "Ardem as perdas" de Gamoneda? Saiu nas Quasi, aposto que ias gostar...
Vou procurar
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