terça-feira, março 25, 2008

Unmagnificent lives of adults

É tão difícil escrever um poema
que não fale da morte.

Manuel de Freitas


Para não escrever a repetição dos dias e a sede
que nos move, caminho em círculos,
faço ilustrações de corpos desérticos e explico
o que acontece quando se atinge aquele estado crítico
em que a desidratação carrega a consciência para um lugar ermo
e a abate com um tiro pelas costas.
Leio muito ainda, mais que tudo ensaios sobre o anonimato
e a cegueira, o comércio e o livre tráfico de fantasias, tudo o que sirva
um conflito de ficções. Cada um de nós risca
a sua imobilidade no papel, traçando um corpo de texto que se arrasta
envolto em ligaduras, frágil, balançando apoiado sobre muletas, rima, tropeça, cai
e depois reergue-se e continua nesse lento suicídio da identidade.
Surgem estranhos, personagens loucas que vão perdendo o autor e se evadem,
num acto de dispersão que consome a realidade.
Depois há quem se contente com um simples diário,
com a enumeração de factos biográficos comprováveis e a percepção
desiludida e crua das coisas, de como o tempo passa e tudo perece.
São diferentes maneiras de estar ou não estar, perdemos
as nossas primeiras colecções de valores sentimentais
e vamos deixando de lado todos os planos e a longevidade
da nossa inocência. Neste momento, eu, estreio outro
maço de provisórios
e persigo algum fantasma apenas o tempo suficiente para me cansar. Sei que
já não deixarei este país por nenhuma promessa e, ao percorrer
as ruas de Lisboa que não conheço, deixo que outras cidades
caiam esquecidas no fundos dos meus bolsos.

É fácil ceder a vida aos primeiros escombros,
deixar a casa apagada quando as lâmpadas se fundem,
habituamo-nos a não ver e depois a não pensar, as mãos
férreas ao anoitecer tornam-se mecanismos da escrita
e debaixo de um brilho de prata deixam as últimas linhas
a decorar o forro das gavetas, versos que podiam ser de alguém
que não tu, mas que assinas com o peso de uma alma penhorada e
o que te resta é
o espaço imenso de um corpo sem legendas,
intacto, esboroando por uma lua frívola
num compasso de espera enquanto não nasce o sol
e vem esmagar a urdidura de assombrosos delírios
que compõem a extensa tela onde se pinta o borrão da tua espera.
Outro corpo há-de chegar e partir, isso não mudará nada,
serás sempre uma criatura trágica que insiste em colar de volta
algo que nunca existiu, qualquer coisa como um coração ou outras porcarias
que afinal não passam de chumaços de fita adesiva. Vais tacteando por tudo aquilo
que tenha pulsado um dia, reatas fragmentos de coisas que se partiram
há muito tempo atrás, e o tal coração torna-se um arte-
facto inútil, sem história nem moral, apenas
uma lápide sobre este fosso
no epicentro de um corpo acidental. Um fóssil de plástico, nada.
Diferentes tipos de sangue confluem no final de cada dia
através de um mesmo algeroz e rendem-se à cor branca,
os corpos são benzidos, os espíritos evangelizados, todos
vizinhos, inquilinos nas elevações de lixo, hordas cítricas
de gente de lata com os seus penteados parabólicos, contentes
com as suas terras prometidas, terras santas, áridas e inóspitas.

Também eu sonhei que matavam a gaivota...
Quando acordei tinham realmente disparado sobre ela. Não há nada a fazer,
o mundo não muda porque queremos que ele mude, mas só porque nós mudamos.
Nas províncias do medo há homens que simplesmente precisam de morrer.
Entretanto e enquanto esperamos, a terra torna-se um asilo de alienados,
doentes de tristeza forçando a cabeça contra as barras de ferro
para poderem espreitar alguma coisa do outro lado da janela.
Abastardamo-nos, enchemos os lugares todos desse autocarro
que segue sem direcção e vamos em visita de estudo contemplar o abismo.
Quantas mais filas se contam para trás piores são os vícios, alguns fumam,
mais atrás outros snifam ou injectam-se, e, na parte final do autocarro,
há quem se mutile pelas mais variadas razões. Ninguém explica nada a ninguém,
estamos todos perdidos ao mesmo tempo e nenhum deus virá ao nosso encontro.
Lateja nos nossos ouvidos um vento fraco e há quem lhe invente
uma voz, quem diga entender o seu dialecto. Uns fingem
que acreditam e os outros acreditam mesmo, mesmo sem pensar.
Por um fenómeno de repetição transmitem-se os tradicionais infernos,
brandos horrores e toda a culpa que se condensa na adiposa pele,
culpa de estarmos vivos, de não sermos perfeitos
e por tudo o que nos dá prazer ser tão mortal.
Aproximamo-nos finalmente no limite de um azul cobalto, o de um balcão
onde a gordura dos dias vem desinfectar-se dos seus demónios e fantasmas,
escrevemos poemas do álcool e seus sucedâneos, queimamos os neurónios
que temos a mais e ouvimos o velho que ora toca harmónica
ora descasca laranjas e nos conta estórias que exageram a vida
o suficiente para que se torne divertida.

Regressamos a casa e somos abordados por estranhas,
Alices ressacando em frente ao fogão, de televisão ligada
transmitindo em loop imagens da epidemia californiana.
Enchem-se de ideias sobre como tudo é e devia ser, castigam-nos
porque o mundo não tem regras e queixam-se se não temos tempo
para alimentar os seus complexos cancerígenos. Qualquer gravidez
é precoce, as crianças deixam de chorar
e começam a correr pela casa com as mãos sujas
do nosso sangue, e somos obrigados a fingir que a sua alegria
é o que há de melhor no mundo, mas elas são tão estúpidas
e magoa-nos pensar que não mudámos muito, apenas perdemos
tudo aquilo que um dia sonhámos ser nosso. Cada vez que nos enfrentamos
ao espelho apenas vemos um grito silenciado, um susto sem expressão,
fora de casa não somos mais que sombras cumprindo encargos.
Em alguns fins de tarde damos por nós sozinhos no carro,
engarrafados no trânsito entre mortos que se distraem da morte.
Chegamos ao nosso bairro ridiculamente ajardinado para disfarçar
o vazio onde nos deixamos sepultar, e, perante o amontoado
de tudo o que não faz sentido, aquilo que nos agonia
são saldos negativos, as contas por pagar, a inclinação
da realidade. Começam a pesar na consciência
todos os delitos e crimes que não consumámos,
as drásticas mudanças de vida que tínhamos planeadas
e que se vêem subtraídas dos seus impulsos audaciosos,
é uma luta com a memória, os indistribuíveis instantes de arrebatamento
contra tudo o que acabamos por ser - esta imagem
de ácida lucidez no fundo de cada reflexo
comentada por uma voz tétrica que esteve sempre lá atrás.
Aprendeu a ler e lê agora mesmo estas palavras sem ficar impressionada,
inclemente graceja e depois, sem qualquer aviso, cala-se.

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