Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
Jorge de Sena
À memória de alguém aprendemos a dedicar estes dias
que já partilhamos menos. Vejo um vulto na página.
Talvez seja um reflexo desdobrando-se contra o esquecimento
- a madrugada reverte um corpo para o sono mais rigoroso,
endurecido, o rosto mudo, deixou de ser natural.
Está um botão de rosa murcha, uma simples prega
no lugar daquele sorriso de irrevogáveis margens que agora
deixará um rasto que todos havemos de seguir
para fora daqui. Todos havemos de seguir este eco
que reverbera na insónia.
Alguém saberia contar aquela anedota melhor, mesmo assim,
por um momento, a histórica sala deixou de sentir todo o peso
daquele caixão que se apoiava contra os nossos ombros.
E ainda que todas as palavras venham a cair sobre o limite
de uma cova sem fundo, cada um de nós tem a sua dose de loucura
e carrega uma pá para profanar os seus cadáveres. As lágrimas são vertidas
no anonimato enquanto vamos construindo as nossas residências
nos arredores do desespero. Há uma dignidade triste
neste momento tardio que serve somente para recordar
outros destinos (agora impossíveis),
quando cada um guarda consigo a sua versão dos factos
e no final mesmo quem não tem nada a dizer
consente no horror de tudo aquilo a que o silêncio
nos obriga.
Não queremos estar preparados mas isto vai acontecendo,
aos outros primeiro - assim vai-nos tornando familiares -
depois virá chamar por nós e tudo aquilo a que podemos aspirar
é encher uma sala igual a esta com suficientes razões
para aproximar mais aqueles que deixarmos para trás.
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