segunda-feira, março 10, 2008

Les jeux sont faits

I

Outro interlúdio, uma segunda pele, a cama e a história do crime
- um desastre ecológico - ela deixava-nos a mim e à cidade
para trás, com todas as suas lojas de conveniência e os vinte e quatro horas
que alimentaram a violência do desejo e o nosso mito.
Seguiam-se os inconsoláveis, a paralisia febril dos gestos
com os dedos demarcando rastos de esperma mais inúteis que nunca,
luas de ranho, as avenidas sem intenção e todas as rotundas
onde o que resta de um corpo se precipita como o ponteiro do relógio
ou uma agulha sem magnetismo girando perdida na bússola
sem apontar qualquer eixo. Depois o tempo saberia abrir a arrecadação
e violar todas as reservas da intimidade, mexer nas caixas e embalagens
apropriando-se de todos os pequenos tiques e sinais do seu mundo,
pirateando os momentos passados e fixando-se
naquele olhar de calibre impossível que nos alvejava
percorrendo a indefinição do espaço onde semeámos os malmequeres
e atingindo-nos directamente nos evasivos corações.

Tiramos algum contentamento nos quadros a carvão, o preto e branco,
a solidão que se vem prostrar e a estética da dor, juntos
resultam bastante bem para a arte
entre técnicas simples e alguns delitos, arrombamentos de casas,
a ocupação e colecção de objectos pelos sentimentos,
um espólio de artigos roubados, cassetes e discos
de arrastar a melancolia pelos cabelos.
Enquanto doer repete-se o exercício de cair várias vezes sobre o mesmo corpo,
e há um comboio feito de sintomas inexplicáveis que pontua cada vez mais estações
alargando o circuito através de limites mais distantes,
passando na parte de trás das zonas residenciais
onde se acumula o lixo do consumo onírico. Engordámos muito
e alguns deixaram-se viciar e adoecer, siderados pela euforia
de um continuum que se desviava de nós.

II

Do amor fica uma infecção neurológica, um vírus sexual
que corrói os nervos e espalha no sangue uma série de moradas
para pensionistas, desempregados, delinquentes, em suma,
um extenso bairro anti-social disputado entre vizinhos
que vão ampliando os seus pequenos lotes, estendendo varandas e quintais
por cima do abismo. Nenhum paraíso mas apenas a conformada
resistência de um organismo insaciável, o estupor sem sentido
das vidas que se entregam ao precipício urbano, ao transe das ruas,
distorcendo a ébria carcaça dos edifícios.
Não há igrejas nem escolas ou jardins, apenas um parque comunitário
onde se cruzam restos mortais, paragens cardíacas que percorre o zero,
o único autocarro neste mundo do fim, fazendo as rondas para recolher
os corpos acabados.
Subsiste-se sem motivo à base de transfusões e processos de taxidermia
enquanto se espera a próxima embarcação fantasma que os levará daqui
a bordo de outro delírio, uma travessia sem mais paragens.

III

Resta o frio das manhãs,
a invalidez dos sóis por cima de nós,
guerras civis e outros pretextos para fugirmos daqui.
Inventámos um jardim num último esforço para nos ambientarmos
ao pesadelo da cidade que se tornou esta estrutura de betão
esmagadora, mas quando a obra ficou feita e depois de serem convocadas
algumas naturezas essenciais, demos com uma criança igual às outras
arrancando as asas às borboletas e depenando os pardais.
O jardim ficou deserto ao fim dessa semana e já não havia nada a fazer.

Agora ocupo-me de uma página de anúncios onde me ofereço
na condição de um amor sem jeito, trôpego e mesmo falso se for preciso,
insisto em títulos como "procuro enfermeira para a minha depressão",
marco encontros ao telefone e combino reconhecimentos impossíveis:
"pergunta-me o nome da flor que não tenho no bolso esquerdo, esta de pétalas negras
que tem cheiro de mulher." Faz parte de um jogo para quem
não tem mais coisas para perder. O croupier recolheu as cartas
e o casino ganhou-nos tudo. Sem mais nada acabo por regressar
à esquizofrenia do papel, confundindo os meus traços
com os das minhas personagens preferidas, criminosos que estimamos
e todas as sombras de seres incompletos que ajudam a digerir a solidão.
Já não sou triste, atravesso as paredes e acendo um farol no estômago da noite,
sinto-me alheado e de passatempo em passatempo atinjo o exílio
onde de alguma forma esqueço a insatisfação e começo a ser feliz.

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