terça-feira, março 04, 2008

Cemitérios de papel

um domingo e o peso de um corpo sem talentos
junto com tudo aquilo que nos vai servindo de amparo
fantasmas de trazer por casa e a típica agonia doméstica
um exílio entre reflexos, moles, fracos, arrumamos
a casa, tomamos decisões sobre o que já se tornou lixo
e aquilo que ainda não esgotou a validade
tudo aos cantos em sacos de plástico rotos
há a louça por lavar, alguma sujidade que os dias acumulam
temos o sabão, a lixívia, o detergente e restos de álcool
a ressaca, os livros com o peso da solidão dos outros
corações em segunda-mão que experimentamos
a ver se nos servem
coisas indignas do poema e mesmo assim
aqui recolhidas entre o pó, as sombras cambaleantes
o eco de estridências, o riso de palhaços ao fundo do corredor
e uma leve e insistente dor de cabeça

lá fora não se passa nada, breves sinais de luz
fogueiras apagadas, o fumo dissolvendo-se na espessa névoa
e algum vulto tardio que se apressa
antes do contágio, o abandono que se espalha
pelas ruas, muito pouco e nada
os passos da noite que segue em todas as direcções
atirando pedras às janelas acesas sobre a treva

agora não, mas noutros tempos, a outras horas
desse lado de fora chegavam-me entusiasmos
sons coloridos, desenhos animados e putos de cerâmica
que corriam agasalhados por um vento artificial, quente e alegre
nos dias que correm, pulam e dão tralhos à minha frente
tudo se parte, vêm pousar-me
nos ombros pássaros doentes que
sem um pio
sucumbem escorregando ao longo dos braços até às mãos
e as mãos incapazes de devolver-lhes a vida
aprendem o processo lento de enterrar corpos de lixo
nestes cemitérios de papel

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