sábado, março 01, 2008

Coffee and Cigarettes

O dia ficou marcado por um encontro no café.
Vai sendo assim que ainda tiramos as mãos dos bolsos
para compararmos desambiguações, trocos, domínios imperfeitos
que não têm outro lugar onde cair - ficam ali na mesa
junto com os cigarros e o breve cardápio
que já decorámos.

Entre duas pessoas que se conhecem
não é preciso ter assunto, os diálogos consultam
os contornos do silêncio e quando este se torna áspero
surge uma frase para um pensamento vir partilhar-se
sem grandes referências, sem academismos, assim
começa a ser possível uma espécie de liberdade -
dizer uma asneira com toda a intenção,
generalizar suficientemente o mundo
para dar a sensação que também temos espaço para ele
nos bolsos, ou puxar um cigarro e desenhar
com todo o exagero o retrato de desconhecidos
pousando com os seus sorrisos tristes e
bastante desfocados a inadvertida imagem
de uma tarde escoada na mais impura
das distracções.

A operação lenta destas coisas a nós
parece permitir explicar, às vezes, até a forma de ser
dos outros dias que nos trazem até aqui e nos custam tanto
porque parecem exercícios sem solução.
Contas feitas podíamos, é claro, estar muito pior.
Repartimos o prejuízo daquela hora e meia
e seguimos em direcções opostas, inexpressivamente,
na companhia de todos os rostos estranhos que se pintam
nas cores da loucura, com gestos do tamanho
da mais fria letargia invernosa.

Os cinco minutos de vida de um cigarro
servem para perder qualquer pressa de chegar a casa,
entre passos que aproveitam padrões e desníveis no passeio
dispõem-se entre o real e o mundo de ficções que
não temos talento para escrever
coisas feitas de ar, cadeiras e baloiços, restos de jardins
de onde chegam e partem corpos perdidos e achados,
com as suas mãos gastas (como as nossas) do esforço
de lançar palavras que nunca se agarraram
ao branco das páginas.

Voltamos ainda aos dias perdidos no colégio muralhado
onde chegaram a ameaçar-nos de morte e depois não cumpriram
a palavra. Lembras-te?
Houve quem fugisse para casa nesse dia, nós ficámos.
Estavam prometidas cabeças espetadas em paus,
um filme de horror que pudesse acabar com aquilo
de estarmos para ali a aprender coisas de livros
que nunca teríamos escolhido para nós próprios
e a ser avaliados por isso. Sem refúgios ou vícios, bem nutridos
pela sensaboria daqueles almoços, da comida que escondíamos
para a não termos que comer, o lanche,
o suportável pão com manteiga, o grosso plástico dos copos coloridos
onde a dona Amélia nos despejava aquele leite sujo
com a ínfima porção de cacau
a que tínhamos direito.

No fim daquele dia regressámos todos a casa
demasiado sãos e salvos
com a obrigação dos TPC's que fizemos
entre os protestos silenciosos dos brinquedos.
Os peluches impávidos assistiram a tudo enquanto encardiam
com o peso leve dos dias, com os anos foram-se ficando pelos cantos
dedicados a relembrar a infância antes de serem remetidos
para uma arca numa cave, para desaparecerem depois com o lixo
das coisas que com o tempo perdem todo o sentido.

Nestas ruas que nos levam de lá para cá
pouco vai mudando, só os cartazes colados com cuspo
aos desvios da nossa atenção. Havemos de combinar outro café
lá mais para o final da semana, talvez uma ida ao cinema
ou outra opção que nos valha à última da hora.
Era bom quando insistíamos mais nas mesmas desculpas,
em volta da mesa absorvendo intermináveis playlists
com suficiência em variados géneros musicais.

Hoje o que sinto é que no fundo
nunca praticámos o suficiente, faltou-nos a paciência
e muitas vezes algum compromisso com a vida.
Não jogávamos nada mal mas a mim não me passaria
pela cabeça a ideia de desafiar a morte para um jogo de xadrez,
provavelmente até a deixaria vencer-me logo
com um simples cheque pastor. Talvez sintas o mesmo
e gostasses, como eu, de voltar atrás e perder mais vezes.
Agora vai-se tornando claro que é inútil lutar,
além de que parecemos estar de acordo
que tendo a morte como adversário
mesmo sem cometermos erros estúpidos
nunca poderíamos esperar um jogo limpo.
Assim desistimos de qualquer estratégia
e trocámos a distância do tabuleiro de xadrez
por um vazio mais concreto
que já não incomoda o nosso mal perder.

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