quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Requiem

pontuas as frases menos claras, retiras as acusações e alivias o peso dos dedos
sobre as cicatrizadas paixões que desenham mapas de tesouros perdidos
na tua pele, passas a limpo a obra que ficou incompleta como era de esperar
porque nunca foste mais do que um incansável aprendiz
querendo sempre beijar os lábios de um mestre depois do outro
sem nunca teres beijado nenhum, algumas flores apenas, foste um beija-flor animado
nos dias mais longos, nunca o demiurgo artista que se recria a cada fôlego
deixaste algumas notas íntimas sobre a tua solitária cruzada
em busca da beleza e do seu algoritmo, mas não tiveste oportunidade
de desembainhar a espada nem te encontraste perante nenhum dragão
todo o mal do mundo estava nas criaturas ridículas que vêm dos esgotos
infestações de ratos num número tão elevado que devoram mesmo os mais ágeis gatos
agora pernoitas no dorso de animais idealizados pelo intenso fluir
da tinta, a esferográfica que sangra nas ventas da noite
e persegue as visões delirantes até às suas tocas e esconderijos
onde a alma às vezes se inventa como um rabisco num pedaço de papel
abres a casca dos relógios e deixas o pássaro azul debicar-lhes o mecanismo
enquanto espremes o sumo e interrompes a marcha dos ponteiros
concebes planos e acções de desobediência civil, só porque buscas
aquelas palavras que despertam a consciência dos versos que ainda não escreveste
mas que um dia vão motivar os teu melhores leitores a quererem inserir o teu nome
entre a lista onde descansam nomes de belíssimos corvos como Al Berto e Ruy Belo
reconheces no espelho o aceno cada vez menos teu, o fátuo aperto do peito
quando ouves pela última vez uma canção que recordas da infância que ardeste
para nas suas cinzas renasceres tantas vezes na figura dessa fénix enlouquecida
fazes adeus aos soldados que depois da guerra
se esqueceram do caminho de regresso a casa
voltas uma vez mais ao quarto onde tudo começou
tocas as pálpebras, massajas o cansaço do olhar que entristeceu
e procuras o ângulo certo para descansar o corpo, cruzas as mãos
começas a repetir silêncios que a morte talvez saiba entender
recolhes as impressões dos rostos que vão rever o teu sorriso por cima dos seus ombros
e talvez consigas chorar, talvez te despeças de ti com saudades, talvez não tenhas medo
apenas a sensação de que calçaste bastantes sapatos e conseguiste gastar alguns
talvez seja mais fácil do que te pareceu até ali, talvez o final seja muito simples, assim

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