sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Os meus desinteresses

[Dark_City_by_Chromogenic.jpg]

daqui contando as voltas dos autocarros
admirando os detalhes, as tangências, a precariedade
da estrutura, o conjunto monumental de incidências fortuitas
que impedem os meus atropelamentos
as regularidades de todos estes processos
o enorme circuito

houve um dia em que também quis deixar esta terra
mas a expedição desinteressou-me, o mundo todo
revelou-se tão previsível como o meu bairro -
é a ele que chego e dele que parto todos os dias

vou recenseando estes corpos, anotando padrões
estudo os corações fungíveis, o arroteamento demorado
das minhas ruas, mantenho a actualização dos cadernos
sei os movimentos e o carácter silencioso das deslocações
entre lá e além, cada corpo e o seu processo de extinção
escrevo isto tudo e nada, anoto a hora do sol se pôr
vigio-o para ter a certeza que cumpre os seus horários
sinto a gradação da luz, a rarefacção dos quadros
que a noite vai consumindo e depois

viro-me para os meus seres lunares
muito dados a frívolos entusiasmos, apaixo-
nadas explicações sobre o caos que nos recolhe,
uns de forma mais flagrante que outros,
também tenho uns que prefiro a outros
como o velho negro de alva carapinha que ladra furiosamente
ao vento quando este passa cheio de atrevimentos
e lhe vem com conversas e assombros
e aqueloutro velho recolhido neste lar meio amargo da vida
que faz questão de ir à mercearia só para comprar iogurtes
e depois não os come, tem alergia à lactose, mas dá-se por contente
só de (por agora) lhes ir vencendo a validade

assisto às primeiras desistências, os corpos que arrefecem cedo
no leito, procuro aqueles que se entregam aos jogos nocturnos
e se inflamam, raras luminescências no escuro
que quando se apagam nos deixam cegos
são corpos breves, muito dados a delíquios
depois afasto-me,
se não há mais corpos, e regresso de novo amanhã
com a violência do amanhecer

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