sábado, fevereiro 02, 2008

Long Time Coming

para a Golgona

uma íbis rasga o abdómen cinzento do céu,
parecem leves as primeiras horas da manhã
mas esvoaçam depressa para muito longe
e abrem caminho para a tensão frenética dos corpos
castigados pelo labor maquinal dos nervos,

este rosto que proponho enfrenta tudo o que tiver que ser
enquanto o mundo negro se pega aos seus sapatos,
é um tipo que já não consegue sentir-se jovem
e jura ser capaz de notar as solas a desgastarem-se
enquanto cruza a capital em transportes públicos e a pé
entre entrevistas de emprego e aquelas oportunidades
que levam depressa uma pessoa a lugar nenhum
a manhã morre logo
e lisboa à tarde parece uma cidade cansada, uma velha
que se senta num banco de praça a dar de comer aos pombos
enquanto o mundo carrega o modo rewind
retornando a casa a tempo de apanhar todas as telenovelas

antes de dar o dia por perdido, alinhas umas notas
no caderno, para uns versos (outro poema quando calhar)
e lá está ela, auto-suficiente como tu gostarias de ser
assexuada ou demasiado entendida para precisar de companhia
despedida de um vitral com motivos religiosos
aquela menina no café de sempre, que teima
em não reparar quando a olhas com o vício do peito a abrir-se em flor
e que só levanta o rosto no final de cada capítulo
sendo que o livro que diluí nos gestos
parece ser sobre a comida tradicional de Singapura,
e talvez não passe de uma capa dura para um livro que escreve mentalmente,
parece mesmo estar a ler numa língua, a pensar noutra
e quando o empregado passa pede uma água do luso fresca, em português
embora tenha há momentos falado ao telemóvel em espanhol,
recupera os traços que desenham o fim da rua
volta a baixar o olhar e é como se estivesse
sentada do outro lado do mundo
e não é que desistas dela, mas as pretas que tens no bolso
já não chegam para uma segunda cerveja

metro, campo-grande, 47, mais quinze minutos a pé
e estás de regresso ao teu enorme buraco
recebes o homem tranquilo com a sua mala de cabedal
cheia de impressos, e que anda à procura de um quarto
a bom preço para alugar,
mas como é um vendedor dizes-lhe que mudaste de ideias
e que já não estás a pensar ter um colega de casa,
nisto percebes que apesar do aperto
provavelmente não estás mesmo

sentas-te na cama do quarto maior
que nunca redecoraste pois não te sentiste ainda
um daqueles homens com um gosto só seu
e assim ficas inspeccionando pela enésima vez o padrão colorido
das matrioskas e a atenta e corrosiva fixação
das bonecas de porcelana que pertenciam
à avó hoje morta, uma mulher que só te deixou
uma noção mais audível do silêncio, um sinistro vazio
a pontualidade sufocante dos seus desaparecidos hábitos,
os pontos estudados onde se apoiava
ao atravessar o espaço
os rendilhados sobre as mesas, as pratas,
aqueles dois quadros com os veleiros para as oníricas travessias
mar adentro, mar esse que nunca irá salgar o teu corpo,
as margens incineradas de algumas cartas
a tarântula senil tecendo teias nos lugares mais improváveis
de uma casa onde nunca foi difícil apanhar insectos
habituaste-te a ela depois de teres tentado matá-la à vassourada
umas poucas vezes sem sucesso
foi o único animal de estimação que ficou
quando pouco tempo depois da dona, o gato Zé
também deu os seus assuntos por tratados
e passou para a varanda da morte
para trás ficaste tu e a casa
mordida de bichos, com a madeira consumida pelas térmitas
quatro assoalhadas para arrumar objectos pessoais de três fantasmas
e o sótão onde não metes os pés há quase três anos
porque uma vez te pareceu ter ouvido barulhos,
talvez fosse o fantasma dela a remexer uma última vez
nos álbuns com as fotografias daquela infância
que era das poucas coisas
que fazia questão de recordar

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