quinta-feira, fevereiro 21, 2008

flaunted

lembro-me de quando me custaste dois elogios
e pouco mais, hoje cobras à hora arranjaste
um disfarce de puta e um pseudónimo a condizer,
agora já morres por qualquer um embora tenhas
preços diferentes para sorrisos iguais,
não tens carteira profissional mas um cartão
que apresenta esse teu talento na forma como lidas
com as venenosas ânsias dos mais pragmáticos corpos
orgulhas-te dessas inscrições em violeta, esse teu decadente ar
de especialista, "gestora" é o que dizes ser,
ou gerente, "gerente de um negócio import-export"

quem por ti passa paga as taxas, cumpre as obrigações
dessa casa alfandegária que tens ao serviço da vária clientela,
um serviço limpo, recomendável: desinfecta-los, limpas-lhes o pus
e as secreções de esperma - esse sangue que sangram
os infelizes - e eles ficam mais compostos e voltam
para casa onde dormem um pouco mais descansados...
nenhum deles tem, contudo, o meu cadastro no teu registo,
terá que ficar alguma coisa de nós, a arquitectura de memórias
as listas de transgressões que fiz por tua causa,
multas por excesso de velocidade, as marcas de pneus
indicando todos os limites que violei e mesmo
a violência dos acidentes, choques quase frontais,
derrapagens e os precipícios de onde me despenhei, tudo isto
além das coimas por estacionamento proibido à porta de tua casa,
álcool no sangue e as doses excessivas de tristeza no coração
registadas no balão de polícias que já me conheciam
e me tratavam com a cortesia que se dispensa
a um amigo desesperado, o bom idiota infectado de um amor frio

depois de ter sonhado sem convicção só para te acompanhar
em todas essas deambulações pelos circuitos horrorosos
por onde se vão estendendo as mil e uma léguas da desilusão
fui juntando as minhas próprias pedras e conchas, aperfeiçoando um ritual
e hoje arranjei uma coisa simples, um sonho pessoal, íntimo e intransmissível,
não avanço mais, mantenho-me acima da linha de água, vivo no corpo
este corpo demolhado, o olhar dado a fixações, os lábios gretados,
o sangue embolorecido e este silêncio que escreve, o silêncio
das testemunhas ameaçadas pela conspiração dos inocentes,
vivo de pouco, um poema ao acordar ou deitar
as tais notas remissivas, estas citações de íntimas horas breves
e a profusa linha de comentários que vou tecendo
ao assistir às manifestações fulgurantes das juventudes hitlerianas
celebrando as suas primaveras, os seus fins de mundo
e as perseguições que fazem enquanto não se cansam de esperar
por um poeta inspirado que reclame e demonstre
uma indesmentível afinidade com Deus - enquanto esse homem não chega
vão passando o tempo, esgotando o pavio, acendendo corpos para cinzas
e crucificando alguns bons suspeitos e outras presas fáceis - e isto
serve-me para variar desse tema, que é o que vais sendo

ainda existes mas eu já só te desprego das latitudes impossíveis
onde te foste esconder para imaginar-te não como essa mulher
que preferiste ser, mas antes como a menina com medo de se picar
na roca afiada, aquela beleza que se dedicava à contagem de anjos caídos,
a pequenas cerimónias de consolação e a impensáveis colecções
de um género diverso de impurezas que no fundo até serviam
para enfeitar a dor dos dias que gotejam na pele

pediste-me que não escrevesse mais sobre ti, mas parece-me justo
e bem mais fácil que sejas tu a continuar com o que tens feito, não me leias tu
que assim ninguém realmente me lê

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