Na escola entre tantas lições inúteis não nos ensinaram
que a mais perturbadora disciplina na vida é saber
aguentar quando esta nos devolve um abismo inesperado
do fundo de coisas tão habituais e previsíveis como um copo de vidro.
Talvez eu não possa queixar-me já que não cumpri a totalidade
dos objectivos de avaliação, sempre que possível refugiei-me
das leituras obrigatórias e dos imperativos curriculares.
Desiludi muitos professores, vou desiludir mais alguns
e espero, mesmo assim, conseguir safar-me melhor que alguns deles.
Deduzindo aquilo que somos àquilo que gostaríamos de ser
a verdade é que, como dizem os mais optimistas, o mundo
e mesmo o país dão sinais de estarem cada vez melhor - no fundo
para progredir basta seguir em frente - de resto é sempre
uma traição à pátria falar mal quando o que é preciso
é estarmos todos contentes e os restantes bem disfarçados.
Enquanto não nos abrem a correspondência, vamos transferindo
os sonhos para além do limiar distante onde as coisas
talvez ainda se concretizem caso entretanto descubram
a cura para essas doenças de que vamos padecendo.
Eu penso morrer de velho, queixar-me imenso de cada dor
e gozar com isto sempre que puder.
Lembro-me de como aprendemos a dividir muito por poucos
e pouco por tantos, ensinaram-nos a multiplicar gestos sem efeito
e a somar corpos sem qualquer ventura, mas hoje o que mais fazemos
é lidar com o apagamento de aniversários nas agendas,
ainda estamos a aprender a subtrair linhas de eloquência
por significativos sinais de menos
ou anotações com o peso de 21 gramas - um processo
a que nos acostumaremos (dizem) mais tarde ou mais cedo, em nome
da simplificação das ocupadas vidas que vamos suportando.
Há contas que nem devíamos ser nós a fazer, mas os nossos diários
é isso que acabam por se tornar - difíceis cadernos de contabilidade -
afinal a matemática provou ser realmente importante visto que
é mesmo necessário dispensar os humanismos para chegar ao resultado
objectivo de cada equação. Deste modo lá nos habituamos,
para o nosso próprio bem, a processar tudo, mesmo o prazer e os afectos,
como simples dados finalisticamente positivos ou negativos.
Lá fora, por agora, ainda podemos contar com os cafés
abrindo e fechando, cobrando um preço sujeito sempre à inflação,
pelos retardatários do vegetativo estado em que nos deixamos cair,
embevecidos pelo movimento de uma cultura
que faz o que pode para ajudar a consciência ao embale silencioso.
Recolhidas no interior dos apartamentos, as almas enlatadas,
piscam de forma interrompida frente ao ecrã do televisor,
nos passeios, que já não servem para passear, corre-se
para o trabalho e de volta para a solidão - repito-me, eu sei,
mas asseguro-te leitor que já não é tão fácil apanhar
as velhas à janela limando as unhas da morte.
Os gatos camuflados entre a cinza da manhã percebem
reflexos transparentes na cara distante de quem
com eles divide a vista a partir das alturas
e parapeitos sobre todos os atalhos que rasgam Lisboa.
Os nascimentos e primeiras comunhões que ainda ocorrem
serão o suficiente para nos lembrar que o mundo não acabará, nem sequer
irá mudar muito, depois de nós. Continuará a viver-se mal
por aqui e as ruas vão inspirar a mesma dor e a mesma sede
que vamos aliviando, ainda teremos, no futuro,
leitores para o que escrevermos ou para o que sósias nossos
venham a registar, talvez com melhor sorte ou mais graça,
em papel ou desta forma que sendo tão virtual e gratuita
torna tão claro que não poderíamos esperar outra recompensa
senão um breve assentimento daqueles que
alguma companhia esperam de nós e também nos fazem.
Só assim ainda somos qualquer coisa que se pareça
com protagonistas, personagens centrais de contos
sem nada para contar, heróis sem feitos nem jeito
ou sequer qualidades para inspirarem poemas épicos
a outros artífices que vão, como nós, queimando palavras
nos interstícios da História. E assim estamos como os outros
que subtraem e seguem, de rostos desfeitos entre ensaios
para um sorriso mais sincero, de feições sombreados pelo desperdício,
envolvendo-se como podem ou sabem, e desenvolvendo
a mitologia urbana que nos distrai. Alimentamos de migalhas
a revelia inócua dos dias, breves pombos dominando as praças
só por insistência. Afiamos os lápis e desenhamos retiros
enquanto obstinadamente queremos desafiar alguém,
usar os punhos, quebrar o vidro dos nossos olhares,
dedicar a inteligência a antagonismos, esticar o pescoço, atirar o peito
para a frente e passar os dias fazendo por esquecer
o único destino que a todos aguarda, e se vai colando
na superfície dos espelhos, acenando alegremente
para o nosso medo.
Depois de tantos desvios e encruzilhadas, acabam-se as noites
entre demarcações fétidas nos ângulos esconsos a serem lavados
pela chuva que ainda terá que cair, como cães vadios ao frio,
mijando entre canteiros espalhados pelas sete colinas,
entornando a melancolia e vomitando
as intestinais revoltas que assim ficam como a sopa de excessos
a arrefecer a base dos monumentos que avivam o nosso orgulho
e toda esta inexplicável dor saudosista.
Sem comentários:
Enviar um comentário