domingo, janeiro 27, 2008

unrated

escondes por baixo das tábuas do soalho
um manto negro sangrado de vestígios
sabendo que alguém muito mais tarde que cedo
haverá de encontrá-lo, pegas no caderno
que gostarias que fosse uma espécie de diário
mas onde acabas sempre por confundir
todas as datas numa mesma

procuras a noite inteira uma palavra no dicionário
desistes e foges para a cidade arrastando o corpo
como a um refém,
ali nos resquícios da treva vem a madrugada
e colhe as últimas solidões
antes de preparar a transmudação das dores
para a septicemia de um novo alvorecer

segues o barulho das garrafas
as pistas no caminho das profecias que perduram
avistas ainda a retirada de alguns rostos enrubescidos
outros, o dos sequazes, sempre pálidos
fantasmas que velam pelos vivos
enquanto estes não os acompanham
para a noite depois da noite
a afterparty que serve para deleite dos espíritos

dás com o rumo dos lábios mais rejeitados, cerrados,
os endurecidos sexos pela perseguição dos corpos
engates fracassados e o destino triste que lhes espera
na outra ocupação artística das mãos

cruzas o caminho dos travestis que sabes serem
aqueles que hão-de segurar a alegria
quando o mundo (as we know it) se der conta
que está prestes a acabar
ouves as melancólicas vozes dos prostitutos
trocando versos entre várias observações,
apostando no preço
de coisas tão imprecisas como as suas almas

no enredo destas ácidas ruas
dás por ti, um estranho uns passos mais à frente,
virando numa esquina num embale decidido
e desaparecendo para te despistares, ficas só
sem ti mesmo e pensas:
«o que faço eu aqui?»

nesse momento vês uma coisa
que não vias há muito tempo,
um homem com uma faca nos dentes
rasgando intricados versos surreais
no muro de uma avenida que se encherá
de iletrados universitários pela manhã

esqueces a tua morada e assistes sem querer
ao nascer do sol, mais um dia - hei-lo a despontar
como um signo da vitória - reinicia-se
o impecável ofício da loucura,
respeitando intervalos certos
lá vão sendo invadidas as calçadas
e as estradas
lá estão eles, todos os nossos notáveis,
modelos exemplares para o cidadão comum
cumprindo a rotina de uma dança
sem sequer o suspeitarem

e tu encontras nisto a palavra
que procuravas, mas já não interessa,
apanhas o 47 que saberá levar-te de volta
e deixar-te em casa
para picares o teu ponto

Sem comentários: