quinta-feira, janeiro 17, 2008

o trajecto sistemático

no interlúdio entreviu-se um gesto de cansaço
o maestro deve ter querido pousar a baqueta
mas não o fez, foi o suficiente para os mais atentos
Mozart talvez seja perfeito, mas só um invejoso
nunca se cansa, toquem as peças de Salieri
depois deixem cair o pano sobre nós
a cortina insensível, e oiçam o clamor,
o bater das palmas - cortesia dos primatas

no rádio, de volta a casa, a última de um artista pop
os irreconciliáveis tiques ao volante, a repetição
das primeiras palavras do refrão
subconscientemente atordoado, percorrendo
com o olhar os slogans nos outdoors,
reparando mais à frente numa multidão à entrada
de mais uma dessas igrejas do sucesso

a lei dos semáforos, uma sirene ao longe
o movimento nervoso de alguns condutores
produzindo a impaciência geral, muitos
não sabem a pressa com que entregarão
as vidas aos índices de sinistralidade,
e há ainda quem não tenha reparado na facilidade
com que o sangue se dissolve no alcatrão

um pensamento apanha uma vaga na mente
enquanto atravessa uma rua com nome de poeta,
entre o ruído noticioso, dando conta
de recomendações ministeriais, recorda uns versos
desses que mereceram as típicas prescrições terminais
mortes embelezadas pelo tardio reconhecimento
os tão comuns elogios fúnebres, porque afinal
já se sabe que é na condição de morto que o artista
merece todo o apreço e respeito que o mundo lhe pode dar

para as adocicadas consciências fica mais fácil
falar de escolas e não de ideias, já que pensar
normalmente cansa; à esquerda repara num beco
que serve de refúgio a pululantes vagabundos
que muito pigarreiam pela noite dentro
encenando os diálogos entre o vasto elenco
das suas esquizofrénicas companhias teatrais

vem-lhe à lembrança aquele homem
que concerta o desuso de certas coisas
como espelhos e palavras quebradas
fazendo os possíveis para evitar que o traduzam
ou interpretem, gosta de isqueiros, colecciona-os
os isqueiros, diz ele, funcionam como hipérboles
para as transgressões à doença nocturna
a regularização dos ciclos menstruais da noite
qualquer coisa como a liquidez nas breves observações
que os olhares mais intranquilos bebem dos relógios

numa rua mais escondida reconhece as sombras dos traficantes
os seus movimentos cheios de suspeita, procedendo
às transacções que absorvem a vida daqueles
que trocam as entradas pelas saídas e se agarram
aos sinais de stop tentando projectar o mundo para fora da cabeça

aproveita um vermelho para sentir o seu próprio
batimento cardíaco, quando inspira de novo sobem-lhe
os canais do espírito um conjunto de sobrenaturais
associações de imagens, a fantasia lúcida
de uma cidade que cede perante os indícios claros
de que o mundo não é o contexto ideal para um homem
conduzindo o seu carro de volta ao mesmo lugar de sempre,
há demasiadas provas de que a felicidade partiu
sem destino e são as inteligências mais secretas
que incitam todos a abandonarmos o que quer
que estejamos a fazer agora, para nos lançarmos
para fora das linhas bloqueadas no sistema de GPS

intuitivamente deveríamos saber como nos perdermos
mas talvez o medo nos conheça bem demais, sem pensar nisso
já subiu os andares no elevador constatando a falta de mistério
da figura que o mira de alto a baixo no espelho,
poisa as chaves, fecha a porta e suspira, dali em frente
tudo será como um jogo cronometrado, ensaiado ao pormenor
até por fim se enfiar na cama e se desligar

o sonho faz um esforço por lançar algumas pistas
suficientemente óbvias, um apressado coelho branco
alguns anjos negros, eróticos, uns lábios macios de mulher
junto ao ouvido, falando de outras possibilidades,
com o sexo crescendo levanta-se
para se achar sozinho ou mal acompanhado
masturba-se desiludido, depois disto fuma um patético cigarro
pensa em escrever qualquer coisa, um poema

olha demoradamente o telefone, disca um número,
mas arrepende-se, bate com o auscultador, fala em voz alta
como se recitasse para si mesmo um poema de improviso:
premedito-me, volto a querer escrever-me
sugiro que negociemos as condições da nossa reclusão
volto a pensar-me nessa palavra, reclusão
é importante, iluminemos as nossas mais influentes caveiras
material para acender as mãos, os dedos, e as direcções
que quisermos apontar, noções combustíveis, e as visões incendiárias... foda-se

desiste e fica-se por umas notas em post-it
-riscar tudo, o esquema fixo das coisas-
cansa-se, sabe que aquilo não significa nada
e que se sentirá ridículo quando a manhã trouxer a sua luz
queimando todos os delírios desta madrugada,
liga a televisão abandonando-se completamente
nesse vulgar gesto, procura um programa "de jeito"

está a dar qualquer coisa sobre animais,
sempre se sentiu comovido com a humanidade dos animais,
consegue chorar assistindo enquanto o espaço no canil aperta
com as remessas diárias de cães traídos
bons amigos, sacrificados por umas férias no brasil
custa-lhe que no verão seja tão natural que redobre
a velocidade a que os abatem, sem aviso
custa-lhe aquela última expressão, sem surpresa
e como caem no esquecimento, sem mais nada
ao mesmo tempo pensa nos cachorrinhos que vão custando fortunas
aos amantes com tendência para o exagero, pensa no tempo que não pára
e nos hálitos que se abraçam mas que depois já se corroem desgostosos
pensa na imperícia da paixão perante a qual
até o Lulu se vê abandonado na berma de um IC

sem dar por isso voltou a adormecer, conduz o seu automóvel pela estrada fora
a alta velocidade, sente-se mais e mais livre à medida que acelera e acelera
de repente, vindo do nada, um cachorrinho atravessa-se no caminho e zás
acorda, já é de dia

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