quarta-feira, janeiro 09, 2008

Tabacaria (não é de hoje)

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantarmos da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira

tarde ou cedo todos passamos pela tabacaria
entregando os trocos existenciais que trazemos na algibeira
observando com o nosso semeado desprezo
os cabeçalhos dos jornais, as parangonas
fixadas pelos jornalistas que teimam em causar sensação
sendo que cada dia mais cedo os largamos no lixo
e continuamos a preferir ignorar esse mundo
distraindo a azia que nos incomoda, o sarro das manhãs
a consistente maleita crónica que nos torna indispostos
introvertidos, nos cinzeiros onde apagamos todo o tipo de pensamentos

pagamos os corações descartáveis, os cigarros de chocolate
ao dono da tabacaria e cumprimentamos o Esteves
que ainda sabe de cor o sorriso menos metafísico do mundo
enfrentamos o mundo com as suas proibições, com as suas preocupações mortais
a saudável ironia com que nos suportamos uns aos outros
cruzando os olhares, fazendo o possível para não comunicar
fazendo o possível para não comunicar apenas por meio de sarcasmos
partilhamos as ruas, as ilusões quentes ou a tristeza e o frio
alguns já vencidos, reunindo outras observações sobre o dia-a-dia
enquanto a maioria, os génios-para-si-mesmos, vão arquitectando
os edifícios espelhados que arranharão (ou não) os céus de amanhã

somos aquilo que conseguimos fingir ser
e cinzas, a matéria que fica da desintegração dos sonhos
ruínas da infância sobre a qual erguemos as nossas responsabilidades
quanto ao futuro, perdemos todo o tempo que podemos perder
já que na vida tudo o que se ganha entra na nossa colecção de enganos
insistimos nos mais vagos sorrisos, outros gestos imaturos e
seguimos sendo crianças mais por afecção nervosa do que pela vontade de brincar
ícones travestis, manequins na montra de uma cultura social que se promove
através de uma publicidade agressivamente enganosa e
enquanto uns só fazem contabilidade outros também escrevem
esboçando a fuga da morte, vivemos cada vez mais anos
proibidos de prevaricar, organizados em função dos serviços produtivos e
das ordens modais da diversão, cada vez explicamos menos a vida
arrumamos o amor junto com os outros embrulhos de natal e
fazemos as contribuições sociais e um pouco mais do que se pede de nós
por descargo de consciência, fumamos os nossos cigarros de chocolate

fumamos os nossos cigarros de chocolate e aproveitamos
a vertigem metafísica num inclinar de cabeça, sentimos a força
da gravidade que atira os nossos pensamentos para o chão
e a vassoura que os varre como o tempo a nós
quando damos por isso já nem temos a certeza se algum dia fomos belos
enfrentamos uma velhice que nos parece demasiado precoce, homens
como árvores derrubadas, sufoca-nos o processo dos dias, o entardecer
da vida, a calvície que nos deixa os cabelos tristes contados nas mãos
uma hérnia, uma úlcera e as premonições de uma arritmia cardíaca
o apagamento faseado das constelações, roubando-nos o céu que um dia
foi nosso e que quisemos dar de presente a alguém, o céu que era
tudo o que nos restava a nós, escravos cardíacos das estrelas
um a um somos abandonados, vamos sendo despejados deste quarto
com vista para o tudo nada
pelo senhorio que em tempos nos habituou a cumprimentá-lo
com um sorriso quase honesto e que agora nos escorraça e nos condena ao degredo

por mais distantes que nos tenhamos sentido quando, como uma nuvem
a morte concebia as suas impressões precipitadas sobre nós
a caligrafia dos nossos erros já não nos deixa desmentir
a perspectiva que temos quando nos inclinamos para espreitar o abismo
as convulsões, os gestos estranhos que damos por nós a fazer no escuro
para desviar o medo, a leitura dos versos por onde a mortalidade nos explora
fumamos os nossos cigarros de chocolate, cedemos perante vícios que não nos matam
quando afinal sempre foi a vida o nosso vício fatal, depomos os corações no seu lume
e o vento passa por aqui recolhendo as nossas cinzas para a fermentação desse porvir
que se exclui de nós

Sem comentários: