Num quarto com vista para o que tu quiseres
dois homens argumentam há horas a fio, numa discussão
que nenhum deles sabe porque começou.
Sentem-se capazes de prosseguir até à morte,
capazes de esmiuçar cada acordo verbal,
desfiando cada ideia até a reduzirem a gravilha, a um efeito de sombras
entre o vazio das quatro paredes brancas onde o louco se movimenta
como um canário estupidificado pelo seu mecanismo de canora alegria
sem ter construções onde aplicar a sua apreensão criativa, canta só
e esse é o papel que desempenha no triste esquema das coisas, afinal la vie est
la farce à mener par tous.
Os dois, talvez fossem amigos ou se conhecessem mal,
talvez fossem absolutos estranhos um para o outro, agora
isso pouco interessa, qualquer lógica no mundo já não lhes diz nada,
naquele quarto com vista para o que tu quiseres
eles debatem-se num frente-a-frente sem nada pelo meio.
São duas forças inoperantes, incapazes de se comoverem,
inabaláveis, só desistirão se derem por si mesmos
a representarem a sua teatral indentidade perante a imagem fiel de um espelho
que se limite a devolver, com a toda a precisão, o ridículo das suas danças.
Um só vê o outro e este só consegue ver o ridículo daquele.
Estão os dois presos de lados opostos de um espelho que os goza,
distorcendo-os mas só ligeiramente. E os dois ali ficam à espera
que o espelho se canse e os confunda numa só solidão,
acertando a demencial coreografia que enlouquecidos de vaidade
praticam com toda a disciplina, dia após dia, em frente ao espelho.
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