segunda-feira, janeiro 28, 2008

Náufragos

O barulho da canalização faz repercutir
um arrepio pela frágil estrutura, enquanto o tempo goteja
nas pias das casas de banho
dividindo os dias e as noites em ínfimos pingos
escorrendo para o ralo esta salobra solução
que molha a carcaça de um prédio
em mau estado de conservação onde resistem,
contra o esquecimento, alguns reformados, viúvos,
solitárias consciências apagando-se aos poucos.
Com os anos foi-se tornando uma espécie de asilo,
um eremitério para aqueles que as famílias
preferem soterrar a tê-los por perto, assombrando
o ritmo frenético que não combina com a precariedade
incómoda e silenciosa da velhice.

Neste retiro partilham-se as despesas com o medo,
todos sabem os nomes uns dos outros e estão demasiado atentos
quando algum entre eles deixa de marcar os compassos
da sua espera. Não fazem disso assunto de conversa,
quando alguém morre todos se enfiam um pouco mais fundo
nos seus silêncios. Menos um nome significa menos um
na lista para pagar o tributo cobrado pela morte.
A morte esse senhorio que lhes respira junto ao pescoço
de noite, atormentando-o desde as articulações
até à emurchecida flor da pele.

Os inquilinos afectados cada um pelo seu rol de maleitas,
sem se mexerem, é como se trepassem nas costas uns dos outros
tentando fugir, sabendo que não pode faltar muito
para que chegue por fim a sua vez de cruzar as mãos
e fixar o olhar no buraco que não acaba.
Às vezes encontram-se na volta da mercearia ou no terraço
onde têm uma noção cada vez mais parca da cidade,
trocam olhares furtivos e sentem aquela tristeza solidária
de saberem que estão todos num mesmo barco,
à espera do inevitável naufrágio.

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