a última tradução da noite, uma redução a escrito da febre
com que uma lebre corre para dentro do saco escuro
e ao longe um vulto faz as emendas necessárias
para contar uma história que não tem nada nem quer ter
alguma coisa a ver com a biografia do fantasma
há outras formas de escutar sons entre os tempos
nem tudo deve ser lúgubre, as crianças ainda aprendem o verde
nas escolas, há ainda adolescentes que aceitam a falta de destinos da vida
e que partem à boleia da sorte, ainda são os velhos que dão alma aos jardins
plantados como árvores de sombra e paciência, o padre ainda encontra razões
para dizer a missa e as beatas ainda controlam os pecados do mundo
enquanto esperam a morte para se irem sentar junto d'Ele
alguém espera por alguém ainda na mesma estrada de sempre
no lugar indicado por uma profecia que talvez não fosse uma profecia
mas, quem sabe, um mero erro de interpretação, perdem-se muitos anos
à volta de anotações, os rastos da melancolia das mãos, a prestidigitação
outras experiências e ataques epilépticos que dão à luz muitas obras
às vezes o simples exercício de manipulação das sombras
as imagens sinistras no caminho da luz contra uma parede
a mãe diz o nome do filho ao contrário e vai desfiando
as camisolinhas de lã que teceu com um sorriso aberto
pela faca da imaginação, outro futuro, roupas que não chegaram a servir
naquele corpo que já tinha nome mas não chegou a ter frio nem a mexer
toda uma vida que não resultou, mas que foi planeada
durante aquela gravidez, o pai chegou a preparar o quarto
com um berço que se tocado ainda balança, as paredes forradas de fantasia a cores
alguns peluches, algumas caixas de música, contentores de infância
de uma infância demasiado feliz, e o filho talvez não tenha podido
estar à altura de todas aquelas expectativas, venceu as beatas na corrida
e foi encontrar-se com o Senhor
na última tradução da noite os dedos desembaraçam-se de algumas lágrimas
no dicionário avaliam-se algumas possibilidades imprevistas
e no meio disto uma lebre mete-se pelo buraco, uma lebre branca
para fazer impressão à vista que a perde na noite, no poema da noite
a febre, o termómetro, o antibiótico, a reconstrução da habilidade de ver as coisas
como elas são, tirar do mundo aquilo que de tão imaginado esteve quase ali
foi quase real, mas não, não chegou a ouvir-se o choro, os pequenos músculos
não se contorceram, apenas um corpo roxo, um saco vazio
para ser enterrado cheio de instrumentos subitamente inúteis
subitamente a angústia rasga todas as fotografias
que nunca serão tiradas, só um pequeno pedaço de terra
para se deporem as flores azuis dos olhos dos pais
perante um nome sem uso e a coincidência de duas datas
o nascimento e a morte
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