deus tem que ser substituído rapidamente por poemas,
sílabas sibilantes, lâmpadas acêsas,
corpos palpáveis, vivos e limpos.
Al Berto
a dor de todas as ruas vazias
uma persiana meio corrida sobre a insónia
cálculos, listas, um cemitério de papel
lixo íntimo, canteiros onde se contorcem
plantas meio devoradas por fungos e pelo desamor
o corpo, extensão de um murmúrio, sonhos
a preto e branco, em slides
uma apresentação da noite com narrador
guia-nos a voz escura, gravada, do poeta
esperas o inédito crepúsculo, demarcando
as torres do castelo, a praça-forte do peito
incentivas o absoluto, a fantasia química
rebuscas o coração das coisas, desencontras-te no pen-
samento atravessando como uma nuvem toda a cidade
por cima das casas e do desenho dos telhados
avistas penínsulas em desagregação, falhas nas cercas
saqueadores pulando os muros da realidade
para o lado de lá, onde se dedicam artífices
à imbricação do futuro, impressionantes alvenarias
que refulgem no rosto mortal destes homens
não falam tanto como aqueles a que nos habituámos
mas escrevem mais, aperfeiçoam o desenho das letras
em superfícies matizadas, cuidadosamente ornadas
elaborando o detalhe e não a dimensão dos seus edifícios
uma arquitectura que vive e transmite a mensagem
a reverência por uma mitologia sublime, profunda
nos seus mistérios, no paciente exemplo dos imortais
que sem nunca invejarem ou se confundirem com as suas criaturas
sempre distantes e virtuosos, sabem legar-lhes
a ânsia pela descoberta, a comichão da vaidade
a coacção no sentido da superação e o idioma da arte
um fosso, subitamente, e deste outro lado
os recortes do silêncio
a dor de todas as ruas vazias
no final de cada noite o vasilhame a cada porta,
cântaros cheios de saliva, lençóis de esperma, vidro partido,
as lâmpadas fundidas, os cartazes da política e as inúmeras fotocópias
do retrato de um triste sonâmbulo
renitente, hipnotizado, tele-comandado (o poeta ensandece
de tanto se repetir), segregado, manso, radicado no gueto
nos bairros encardidos onde sorve às colheres água-pé de ilusões
- alguém lhe grita: daqui ninguém sai sem cadastro - ele estremece
pára e pergunta-se "ouviste alguma coisa?", logo depois
volta a equalizar-se na corrente
eléctrodo, electrónico, electrodoméstico
em choque, viciado na disciplina da combustão lenta das horas
destila-se-lhe o sangue entre itinerários concêntricos
arde a vela amedrontada face ao breu, a vaga luz
no seu olhar cego, a vida sintética, legal, remissa
esquecida entre os lugares dominados pela História
pelas estatuadas solidões, impávidas gárgulas e obeliscos
junto ao mar escuta ainda um rumor cardíaco
uma conspiração, pelo menos em teoria, sente
o sal secando a pele, queimando os nervos, ouve
a voz escura, a desorientação dos cardumes, vê
as pegadas na areia, as achas de uma fogueira, cheira
a flor dos terramotos exibindo a sua transparência
entre fragmentos de vida e morte, espalmada
no meio das páginas de um caderno
cheio de notas para o diário de um recomeço
percebe uma casa de madeira no cimo da praia
o vento escancara a porta, oferece-lhe um sítio
lá dentro há vultos indistintos, medos que acordam de novo a alma
um burburinho, roncos, movimentações inquietantes
pequenos e sinistros roedores
martas, libélulas, vaga-lumes formando iluminuras
um séquito de anjos pirómanos brincando no escuro
imitando a euforia e o riso contagiante
das incandescentes crianças
atravessando a primeira sala, um corredor, e depois um quarto
que a luz de uma lua finalmente cheia penetra por uma fissura
em frente os contornos distintos de uma pesada secretária
um afia, um lápis, um espelho e ______um manuscrito incompleto
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