Esta manhã deste século
entre anjos caídos
a lava da voz humana
podem ouvir neste local da terra
de nome de animal de patas obscenas
como um búzio da cabeça ao sexo
e do sexo à flor do espasmo
vem do murmúrio do caos
e rebenta em sílabas de abelhas nos ouvidos
agora atravessa mil novecentos e oitenta e sete
e todos os meus anos bêbados
vai de um pólo ao outro da memória
e regressa como um tiro no tempo
______através do fogo
à beira do abismo onde começa a adolescência
a grande hélice de estrelas
e os animais favoritos de toda a fome na terra
um automóvel __outro automóvel
um cemitério de automóveis
e é a civilização que amanhece
entre pombos de asas de chumbo
os adoradores do cometa de sangue
vestidos de amianto
e a máquina de escrever dos generais
escreve a palavra cadáver ininterruptamente
até ao final do último acto
se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»
os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros __e o único __os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria
Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave __a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo
eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados
- António José Forte
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