segunda-feira, janeiro 21, 2008

Baile de finalistas

Não é uma história bonita, edificante,
essas coisas. Já conhecia a morte,
mas nunca lhe tinha tocado.
A Ribeira de Santarém, em 1988.
Posso contar? Convidou-me
para que a acompanhasse ao seu baile
de finalistas. Só muito a custo acedi,
de casaco e sorriso emprestados.

Na mesa mais discreta - depois
de muito vinho, alguns whiskies -
os dedos encaminhavam-se
para o centro exacto do pavor
e do desejo. Encontrava a morte,
debaixo daquele vestido azul
(desculpa, talvez não fosse azul).

Pensaria, se pensar me fosse possível,
que a lucidez só podia ser aquilo:
estar inteiro, feroz, consciente
onde dizem que se ganha o esquecimento,
por alguns segundos. Bebia cada vez mais,
sem saber como sentir o que não sentia.
O salão enchia-se e eu nem reparava,
a música, atroz, passava-me ao lado.
Seria certamente o último a reencontrar
o frio agora mais frio da noite,
o Tejo mesmo ali ao lado.

Ela despediu-se, nem sequer
para sempre ou até ao fim
ou qualquer outro dos títulos
do romancista português
que mais lia. E eu fiquei; aquele
inferno provinciano adequava-se
inesperadamente bem ao cheiro
inédito da morte. Bebi com
os que sobravam, na sala de bilhar.
Já não sei os nomes. Calava,
dentro de mim, um cântico final.

Dormi na estação. Talvez agora
não me ficasse grande o casaco preto,
mas deixou de me apetecer usá-lo.
Que será feito do teu corpo, do vestido
azul que quase rasguei, da morte
que gentilmente me trouxeste?

- Manuel de Freitas

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