a baby born addicted to pills
a baby who does not dream,
but who hallucinates
who stares up at us with big mirror eyes
and who does not know who we are.
o corpo matinal soçobra, espreguiça-se, a respiração conhece
momentaneamente a sensação articulada
do livre movimento do ar insuflando-o
atravessando limites distantes, demasiado abstractos
imagens de fundo e rastos que ficam da passagem dos evanescentes sonhos
vencidos a pouco e pouco pela espectral claridade do dia
no espelho o olhar é uma pintura de horizontes divididos
entre dimensões que se debatem, pousam noções diversas
sobre um homem que partirá dali e outro encarcerado
construindo pequenos moldes, rodas dentadas
para fazer funcionar a dispersão dos impulsos,
uma luta entre o absentista que suspira resignadamente
e a atitude de um diletante golpeando a asfixia nervosa
do ar poluído, o ar refractado em pequenas caixinhas lógicas
despede-se desse seu gémeo, esse seu alter-ego inspirado, libidinoso
o proscrito que mesmo com o rosto a ser comido pelos traços pesados
deste tempo que não volta para trás, sorri infecciosamente
e brande a mão poderosa, estendendo um convite para esse outro lado do espelho
cínico, estoutro mantém-se, resistindo um instante
à janela, sobre o parapeito onde pendura o coração perante uma vista
dilacerada por obstáculos que parecem cegá-lo restando-lhe apenas
o apelo da vertigem, lá em baixo as ruas asfaltadas pela moção
dos transeuntes reduzidos a meros rabiscos do medo
procissões mecânicas, diluindo-se nos passeios, nas travessas
entre o sinal sem interpretação dos pombos que engordam a morte
num pesadelo recorrente são pássaros negros, corvos de asas esmagadas
que se pudessem levantar voo arrancariam o planeta
da sua órbita, são estes e não os pombos que enchem as praças
e insistem com os bicos contra a pedra não para conseguirem alimento
mas uma saída, talvez uma passagem para o inferno
o corpo deste protagonismo acaba aqui, ao entrar no banho,
preparar o pequeno-almoço e vestir o fato para seguir o roteiro
da frívola lírica de compassos acertados na direcção do que já se sabe,
disso ficam-nos alguns apontamentos, uma biografia que eclode
a partir de ficções dramáticas, lutas sem expressão
contra injustiças vulgares, algumas erecções mais ou menos justificadas
e uma história clínica detalhada, com surtos depressivos
e cataclismos numa escala infinitesimal
talvez numa ou outra noite ainda volte a sentir-se pequeno
uma criança que se pergunta o que estará debaixo da cama, e uma voz muito segura
muito lógica dirá que "não há nada debaixo da cama", outra voz inaudível
dirá que os monstros que o assustam são uma piada comparados
com os monstros que o pacificam
um dia já não o surpreenderá
o inexpressivo rosto de um jesus qualquer
ao ser apanhado tentando fanar um par de ténis
numa loja do centro comercial
o veredicto, não lhe interessa, prisões perpétuas
cadeiras eléctricas, para um tipo que lambe todos os dias
o metal oxidado, tanto lhe faz
todas as penas são justas
o que varia são os advogados
distrai-se em frente a um plasma de medidas que lhe parecem
muito generosas, observa sentado aquilo que acredita ser o mundo,
subitamente surge uma imagem que o choca - as criaturas desiludidas
às voltas, depois da meia noite, em central park
assiste a documentários e sente que aprende todo o tipo coisas
por exemplo que os católicos acreditam no perdão,
enquanto os judeus acreditam na culpa
pensa para si que isto explica muita coisa
esquecendo-se que não há nada a explicar
nos tempos livres costura na pele uma multiplicidade de recortes
desde vocábulos que lhe soam muito não sei quê até paisagens que o impressionam
ou simples remendos para esconder os presságios assustadores
de pequenas feridas que começam a ter dificuldade em fechar,
vai alinhavando ideias em formas rebuscadas
aproveita imagens tipicamente barrocas, enxerta-as
de emocionalismos, sugestões a si mesmo e remata frequentemente
para os finais com o beijo negro do incansável anjo da morte
...
esquece-se que o fim só interrompe, não conclui nada,
nem pensa que já passou muito tempo desde o tempo
em que os anjos tinham a função de emissários
a morte hoje opera silenciosamente
sem se explicar, sem atenções especiais ou concessões
benevolentes, sem uma última companhia
sem uma conversa consoladora ou um braço nas costas
os anjos, se os houve, perderam a fé, talvez se tenham
recolhido entre nós, talvez tenham fugido de Deus
e se tenham pulverizado por se afastarem da sua razão de ser
talvez se dediquem hoje a negócios improváveis
como a venda de sabonetes, ou outros produtos de higiene
ou pode ser que sejam agentes e managers em hollywood,
quem sabe talvez até se tenham todos apaixonado por loirinhas americanas
e precipitado do topo de edifícios de Los Angeles
talvez os anjos já não respeitem a tradição e se tenham tornado
vagabundos sem nome nem compromissos, aproveitando boleias
para os lugares mais remotos onde o terrorismo não preocupa ninguém
talvez se tenham agarrado à imortalidade mas gostem dos prazeres humanos,
e se destruam com sexo, drogas e álcool até ficarem como solidões empedernidas
talvez como todos nós os anjos se sintam perdidos, abandonados e esquecidos
talvez sintam que o mundo está perto do fim porque Deus parece
já não ter mais mensagens para nós, talvez já nem saibam se Deus existe
como nós não sabemos,
pode ser que Deus, seja ele o Deus de quem for,
já não queira ter nada a ver connosco e talvez isso explique
porque é que assim que o citamos nos parece que ele se desmarca
e se põe a salvo deixando-nos desarmados face aos truques
que o diabo continua a fazer com a nossa vaidade
talvez a família já não faça nenhum sentido, enquanto descendentes
talvez a nossa função seja destruir a obra para Deus recomeçar do zero
sem se sentir mal consigo mesmo como executante de um massacre,
nós, os filhos pródigos, não teremos dificuldade em executar a nossa ruína,
o holocausto foi um belo ensaio, imaginem do que seremos capazes agora
estamos mais desenvolvidos, mais competentes, mais amedrontados
talvez já não falte muito, talvez este peso na respiração seja o princípio
e talvez a cumplicidade entre os nossos silêncios perante as atrocidades
seja a indicação de que estamos mais que prontos
faz um teste, experimenta ser livre, atira uma nota de 50 euros pela janela
vais ver que não consegues - 50 não! então 20, vá lá 10, ou 5
não é difícil de perceber que o melhor mesmo é não deitares nada
afinal não há nada a ganhar em se perder, pois não?
a partir de um certo momento já não vale a pena lutar contra isto
somos meras sombras de insídia, aprendemos a gostar da noite
enquanto esta se vai entranhando em nós
infundindo-nos o sangue velho de fluorescências
damos tanto valor aos nossos ritos de passagem
e a estas inconsequências e afinal não temos sequer alguém melhor
que olhe para nós e nos possa julgar, somos artefactos inúteis
desprezados e só podemos combater entre nós
benditos sejam os anjos sodomitas
trocando afectos sem procriar
chorando as asas que lhes foram roubadas
e um mundo que não os deixa partir.
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