sexta-feira, dezembro 28, 2007

A Segunda Elegia

Todo o anjo é terrível. No entanto, ai de mim!
pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,
por saber o que sois. Para onde foram os dias de Tobias,
quando um de entre os mais luminosos apareceu, no simples limiar da entrada,
um pouco diferente, em traje de viagem, já nada aterrador;
(Um jovem para outro jovem, quando este curiosamente olhou para o exterior).

Mas se agora esse Arcanjo dos perigos, de detrás das estrelas,
descesse até nós, um só passo que fosse, o nosso coração,
pulsando violentamente, far-nos-ia perecer. Quem sois, afinal?

Seres desde o início felizes, excessos da Criação,
cumeadas, cimos no alvorecer
de tudo o Criado -, pólen da floração divina,
elos de luz, cadências, escadarias, tronos,
espaços de puro ser, escudos de deleite, tumultos
de um deslumbrado sentir impetuoso e, de súbito, cada um
é um espelho: e a sua beleza irreprimível
de novo é recolhida no seu próprio rosto.

Porém nós, ao sentir, desvanecemo-nos. Ai de nós,
ao respirar nos extinguimos; de brasido em brasido
vamos perdendo o nosso aroma. E alguém nos diz:
sim, tu correr no meu sangue, tu enches
este quarto, a Primavera... Para quê? Não pode deter-nos
em si e em seu redor nos ocultamos. E os que são belos,
quem poderá impedi-los de partir? No seu rosto se levanta incessantemente
e se esvai a aparência. Tal como o orvalho matinal sobre a erva
o que é nosso evapora-se de nós, como o calor de um
prato fumegante. Oh, sorrir para onde? Oh, erguer os olhos:
afastando-se ao longe, a onda do coração, nova e cálida -;
ai de mim! é o que nós somos. Ficará nos espaços
em que nos dissolvemos o nosso sabor? Os Anjos apenas
apreenderão o que é seu, o que de si irradia
ou por vezes como por engano algo
de nós neles fica? Haverá nos seus
traços um pouco de nós, tal como o vago
no rosto das mulheres grávidas? Mas tudo isso
lhes é alheio, na vertigem do regresso a si. (Como poderiam aperceber-se disso?)

Se o entendessem, os Amantes poderiam, na aragem nocturna,
falar de estranhas coisas. Tudo parece ocultar-nos.
Eis que as árvores são; as casas
onde vivemos existem ainda. Apenas nós
passamos por tudo numa troca de ar.
E tudo unanimemente nos silencia, em parte por
vergonha talvez e em parte por indizível esperança.

__Amantes, a vós, que um no outro vos bastais
pergunto eu por nós. Estendeis as mãos um ao outro. Que provas tendes?
Olhai, as minhas mãos apercebem-se de que
são cada uma delas e o meu rosto gasto
nelas se poupa. Isso dá-me uma ligeira
sensação. Mas quem ousaria só por isso ser?
Porém, a vós que no deslumbramento do outro
cresceis até que ele, subjugado,
vos implora: mais não -; a vós que sob as mãos
tendes maior riqueza do que a das vindimas;
a vós que muitas vezes pereceis só porque o outro
tanto vos excede: eu pergunto por nós. Bem sei,
tocais-vos com tanta felicidade porque as carícias permanecem,
porque não desaparece o lugar que com ternura
cobris, porque debaixo pressentis a pura
permanência. Assim vos prometeis a quase eternidade
do vosso abraço. Porém, quando vencerdes o susto
do primeiro olhar e a saudade à janela
e o primeiro passeio pelo jardim, uma vez:
continuareis vós, Amantes, a sê-lo do mesmo modo? Quando vos levais
à boca para beber -: bebida por bebida:
como abandona então, estranhamente, o que bebes esse acto de beber.

Acaso não vos surpreendeu nas áticas estelas funerárias a contenção
dos gestos humanos? Não pousavam amor e despedida
nos ombros tão levemente, como se fossem feitos de matéria
diferente da nossa? Recordai-vos das mãos,
suavemente apoiadas sem pressão, ainda que nos torsos haja força.
Senhores de si, cientes: este é o nosso limite,
isto é nosso - tocarmo-nos assim; os deuses
é que nos comprimem com mais força. Mas é próprio dos deuses.

Ah, pudéssemos nós encontrar algo humano
puro, contido, simples, uma estria nossa de terreno fértil,
entre rio e penhascos. Porque o nosso coração nos excede
tal como neles. E não podemos
segui-lo com os olhos em imagens que o apaziguem, nem em
corpos divinos em que, maior, se contém.

- Rainer Maria Rilke

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