Gostava de vos chamar à parte,
um a um, com um gesto sério
desses mecânicos que ensaiamos
para confessar evidências antecipadas,
imitando essa gente que nunca fez
nada pela vida mas que pode enfim anunciar teatralmente
a insignificância de um cancro maligno,
como se não fosse tudo
maligno nessa vida servida a prazo
sem este culto diário a favor
da nossa absolvição.
____________________Só a morte nos perdoa tudo.
Mas como dizia, antes de me perder
na minha involuntária necessidade
de gastar com advertências
os vossos segundos de paciência
antes de se aperceberem que ler
também mata, gostava muito
de vos chamar à parte, de maneira
que soubessem que o que tenho a dizer
se dirige a essa característica fenomenal
que vos distingue dos outros
e vos torna tão especiais
fazendo o meu olhar pesado
desenhar-se entre os vossos ombros
evitando a energia dos vossos concentrados
olhares expectantes para aliviar esta minha
confissão: eu tenho (suspiro)
uma coisa... uma coisa terrível
- a pausa ensaiada, sem me denunciar,
aguardando o que dirão a seguir, infelizmente
previsível:
tu sabes que em mim podes confiar -
___________________________________eu sei
e finalmente sem misericórdia
um peido
sim, um audível peido
tão apropriado
sobre o vosso desânimo
por afinal não ter eu o tal cancro
ou outra novidade qualquer
que vos livre desse langor obsessivo.
E perante o sincero momento de perplexidade
tempo ainda para uma risada de gozo
antes de me fazerem saber que sou um idiota
e que talvez não se perdesse nada
estivesse eu (mesmo) a morrer.
Esta última parte só a digo eu,
não se preocupem, mas fujam
enquanto o cheiro
não vos lembra um dos verdadeiros
horrores dos mortos a que ainda vão ter direito.
2 comentários:
Não tenho muita vontade de fugir muito menos dos teus poemas. :)
fico muito contente
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