sábado, junho 23, 2007

Como se começa

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O deficiente levantou-se da sua cadeira de rodas e desligou a televisão. Dirigiu-se à estante dos livros e entre os poucos que lá tinha escolheu um de um autor muito estrangeiro.
Saiu de casa e procurou o primeiro lugar entre o sol e a brisa dos ínicios de verão. Sentou-se, olhou em redor e sentiu a acalmia daquela tarde que estava quente sem ser maçadora. Na sua camisa começaram a cair os primeiros pingos de suor e quando o vento soprava os lugares mais afectados pelo calor eram afagados por beijinhos frios.
Abriu o livro e começou na primeira página. Leu tudo, mesmo as notas de referência do livro, depois os agradecimentos do autor e depois a nota introdutória... Leu tudo cuidadosamente. Sentia o peso do livro e era como se fosse uma coisa frágil e muito especial. Não gostou logo do que o autor queria dizer com tantas palavras mas a sensação positiva de estar a ler foi o suficiente para o fazer prosseguir.
Como lia muito vagarosamente demorou-se até chegar ao segundo capítulo, página 23. Queria ter a certeza que entendia tudo, muitas vezes perdia-se em pensamentos que não estavam nas folhas e tinha que voltar atrás porque os seus olhos não paravam. Depois começou a soltar-se, começou a despreocupar-se, começou a ler o que podia ler, a entender o que conseguia e o autor, parecia-lhe, também se começou a soltar, a estar mais perto do que sabia explicar e contar... Os dois juntos embarcaram naquela alegria imaginativa e estabeleceram uma amizade através da história. O escritor esforçava-se para criar aquele mundo e ele esforçava para acreditar nele. Com o esforço de ambos aquela tornou-se uma viagem muito interessante.
As páginas passavam para a mão esquerda e a mão direita segurava os novos passos e entretanto a noite começou a fazer-se convidada. Uma noite agradável que descia a longa escadaria como uma mulher educada e meiga, sorrindo. O leitor marcou o lugar onde estava e fechou o livro. Deu um passeio curto por ali mas fê-lo com passos miudinhos e aproveitou cada um misturando o que via com as coisas que tinha lido sobre locais tão distantes, que estavam agora ali.
Retornou a casa e para não estragar a magia daquele dia não cedeu ao hábito de ligar a televisão. Passou-se por água e fê-lo sem pensar no que ia fazer a seguir, por isso sentiu aquele banho e sentiu a água no corpo, e sentiu-se tão bem...
Depois foi à cozinha e escolheu uma receita que lhe tomasse algum tempo e meticulosamente preparou cada indicação como melhor sabia e silenciosamente criou a sua refeição. Comeu-a calmamente. Lavou e arrumou a cozinha e depois foi escrever uma carta porque há muito tempo que não escrevia a um amigo. Escreveu com muito cuidado apropriando-se do sentido das palavras inspirado pelo escritor que lhe tinha ensinado a respeitar os sinais e a criar um espaço onde a escrita deixa de ser um conjunto de linhas e se torna uma boa sensação.
Nessa noite deitou-se antes do sono e não se apressou. Ficou na cama e sem inquietação nenhuma deixou-se mergulhar fundo nos seus pensamentos e a meio de um adormeceu.

1 comentário:

elouise disse...

Esta leitura foi acompanhada por um sentimento de: serenidade, sorriso, tempo para nós.