segunda-feira, junho 24, 2024


Devo ter batido já um deserto inteiro
à máquina, cada grão uma sílaba, 
e não vejo o fim disto, 
nenhum eco me trouxe o que buscava,
e hoje seria uma ofensa se um
o tentasse. Tenho quase quarenta 
e os pulmões cheios de musgo.
Quem nos lê, vê-nos por aí entregues
aos restos mortais do impossível
a minoria de que fazemos parte, tu e eu,
uns poucos mais, esforçando o ritmo
para atingir o âmago, tentando fazer saltar
o reverso da vida. Mas para quê?
Seguimos para o funeral de outro de nós,
alguém que puxou a sua rede um pouco
mais cedo. Agora o gato dele terá de ficar
uns dias em tua casa, mas descansa
está habituado a tudo isso, ele mesmo
se serve, habituado que está a perseguir
caça grossa, é discreto, gosta de riscar
equações nos muros e de dividir
a realidade com os pássaros,
aprecia também como te demoras
a lavar a loiça, os pratos alinhados,
esse sentido de ordem que antes levava 
alguns a viver de roda de um soneto.
Ficará de olho em ti na varanda,
enquanto acendes o cigarro e o deixas
nos lábios do tempo, ardendo a sós,
e há-de apreciar a tua colecção de garrafas 
com as suas diferentes medidas
de água da chuva, e essa vista sobre os telhados,
esses vasos com um pouco de terra e mais nada,
a pedra que parece fria e afinal sabe
desses ardores que sobrevivem à carne,
e recorda traços, gestos vivos, perfis intactos
após três mil anos, o mesmo terror
diante dessa esquiva graça, e se uns
se desgraçam perseguindo formas,
outros perderam o juízo entre murmúrios, 
e parecem alimentar-se de sons,
devorando as intimidades do idioma.
Talvez isto possa ser o suficiente.


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