sexta-feira, fevereiro 03, 2023


Temos o que temos, e são palavras,
diz-me o velho, hoje frágil, mas que com elas
soube em tempos ser um bruto 
sem pedir muito, olhando em redor,
contendo o escarro, pois podia arrancar
mais fundo algo mais sujo,
e manchar até ao último suspiro uma vida,
como acontece com os mais costumados
dos sedutores, esses que do limitado espaço
de um postal fazem grandes enredos,
elidindo as frases, recalibrando as peças
que andam soltas num suspiro,
quase sem tocar, ouvem bem onde começa
o vazio que tem feito as vezes da alma,
enterram ali um centavo, um lenço dobrado,
uma pena de um pássaro amalucado,
sem correspondência com nenhum catálogo
ou os céus daqui, vão dando voltas,
e depois alguém se lembrará do absurdo efeito
disto, de como dedo a dedo, em cordão, as
vértebras me contavas, como a mão
às tantas já nem diz respeito ao corpo,
como se muda a disposição íntima do mundo,
como quem está ali frutifica de súbito,
e aparece dias mais tarde com um novo
corte de cabelo, e aquele sorriso indescritível,
a expressão terrível de quem acredita.


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