quarta-feira, setembro 14, 2022


Um ritmo irado que da lenda faça
este levar fiado de um hálito que tem já em si
o fim último de toda a criação,
balançando-se com a musa perecível ao lado,
cadáver tão doce servindo de alento,
mudando a natureza aos objectos domésticos,
a atar os fios que pendem do céu escuro,
enquanto da janela passa como um arruaceiro 
lá em baixo o mar, este estranho bebendo
de todas as garrafas, a anotar outro detalhe
na sua enciclopédia líquida,
desfazendo barcos no seu álcool manso,
tirando à terra o gosto, a entregar dos homens
a memória vencida por alguma ilusão,
os motivos que os levariam de volta a casa
até restar só a espuma, vozes flutuantes,
a pauta a que se agarram os afogados.

Ouvimos a canção alimentando-se há séculos
da soberba dos viajantes, da agonia das línguas
mais chegadas à beleza, ao espanto original, 
e por isso nos parece que falam de outro mundo
os antigos, entregues ao rés do real
mais revoltantemente banal, essa frieza
da linha com que se cose tudo, 
e lamenta-se a falta que fazem os que aí estão,
busca-se a água que nos lave da pele 
esse cheiro de fantasmas, mas
é preciso ainda abrir distâncias,
pô-las de volta entre o de cá e o além,
empacotar de vez o limbo,
enchê-las de fascínio, perigos, estudar
de cada uma o seu carácter particular
de modo a que nos expliquem o tempo, 
refazendo-lhe a anatomia,
para que aos sonhos que nos visitam
regressem as ferozes intuições, esse balanço
que nos levou a deitar abaixo as presas
que vivem na intimidade dos deuses.


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