terça-feira, junho 21, 2022


Se ainda tivéssemos o fogo, e este lavrasse
como dantes, abrindo caminho,
se livrasse a vista do excesso de toda
essa ambição ferindo o olhar e o espaço
reduzindo o tempo a uma ordem fria
à obsolescência das coisas, se os homens hoje
não sabem como trocar detalhes entre si,
refazendo a bruma, mas se gastam em gestos
repetidos ditando a mesma luz cansada 
entre espelhos, intimidades devastadas,
se as estrelas mortas fedem no meio de nós
e não há no céu ou na terra quem tire outras
frescas do bolso, cheias de fulgor destrutivo,
se fomos trancados, e a porta do futuro foi selada,
se isto é o que somos, e é tudo o que há a esperar,
só resta a demência de cada um virado sobre si,
esses sussurros a divindades desfeitas
em pó, e vasos quebrados entre as ervas
onde o vento se fere e toca a lembrança
de um mundo que não encontra a sua antiga
semelhança, e nem o sofrimento do que vive
lhe sabe a mais que outro eco, a língua persiste,
à míngua de sede, num chão incapaz
de embalar entre as suas raízes os mortos.
E nós, o que poderíamos resgatar
diante de tal abandono, quando as vozes
são sombras, a água e outras saliências
elementares são apenas recordações, sílabas
entrelaçadas de um texto que também ele
começa a perder o sentido, o livro
que uns poucos lêem a custo, pressentindo 
o sopro que em breve passará entre nós
apagando de vez a chama em redor da qual
ainda se aquece a consciência?


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