segunda-feira, janeiro 10, 2022


Tenta fixar a voz com vidro moído na boca
ouvindo à distância os passos que daremos
por entre lugares de amontoado espanto,
um rosto meio enterrado na areia
balbuciando antigos encantamentos,
e essa quietude que nos segura a mão
livrando-a dos mais vulgares tremores,
seja a imbecil petulância da juventude
ou a vaidosa tagarelice dos velhos.
Que se oiça uma espécie de música
de um impulso doloroso com som de correntes,
basta uma asa cortada no momento certo,
o aturado esforço de dissecar um anjo
anunciando o saque aos céus
para prestígio do inferno, 
e em vez dos livros que hoje todos lêem,
que se tenha ombros marcados,
os de pintores no auge
do seu cintilante desespero,
já que só os dedos manchados de tinta
ainda se mostram capazes de segurar o tempo.
Daí também a vantagem de caçar baleias,
não pela carcaça terrífica e as suas riquezas
e nem pelo assombro épico,
mas pelo susto e as tangentes,
os entalhes fundo nos ossos
e o arrepio que a morte deixa na carne.
Como sempre, importa não se fazer 
o instrumento de outra melodia suja.
Tão poucos pagam à vida o que vale,
e mesmo com todos esses baldes de água
lançados sobre a cabeça
ninguém impediu que tudo se afundasse.
Melhor teria sido se houvessem subido o rio
para comprar dinamite, e tivessem seguido
os anjos no trabalho de demolição,
podiam também ter ensarilhado cornos
com os loucos,
ganhando o distintivo, aquele murro
que te arranca um dente ou dois,
dando espaço aos demais para fazer do mundo
o relato com a ênfase certa,
e exibir ainda alguma cicatriz como o tio
que tinha a de uma bala junto ao peito
assinada por Blaise Cendrars.
Concordava ainda com ele quando dizia
que a guilhotina fora a grande e a última
obra-prima que veio das artes plásticas.
De resto, bom é sentir-se mal em toda a parte
sem ter saudades de porra alguma.
E virar-se enfim para o erotismo
como pobre religião
das noites impossíveis de dobrar.
Quem conhece intimamente o escuro
descobre infinitas variações, colecciona brilhos,
passagens de astros, imprecisões biográficas,
o botão do uniforme de um antecessor
que prova um conflito civil apagado dos livros.
Como sempre é nas margens que se lê
o que importa,
anotado entre o riscar dos trovões,
cheio desse embalo radiante cobrindo
a imensidade. Mas ajuda também
uma rivalidade cruel com a vizinhança,
seja por mulheres como por um verso,
trocando as ameaças mais delirantes,
cartas debaixo da porta cheias de erros
salvando-se raramente uma linha
onde a sombra confusa de um beija-flor
nos faça estremecer de repente. Isto,
um pó que sirva de têmpero a este nada,
esta sopa, as colheres que se sorve
ruidosamente contra a solidão e o frio.

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