quinta-feira, dezembro 02, 2021


Condenados à luz quando só no escuro
poderiam ver-se, e imitar-se
em radiosas variações,
ensaiar de igual modo nudez e naufrágio,
ao espelho, de boca no ouvido um do outro,
cosendo-se com a linha do espanto
a essa distância que do mundo se furta
para persegui-lo mais ao largo, 
como debaixo de água se respira melhor
e dentro da morte os gestos ganham firmeza.
Sem trégua nem pausa, como o astro
aquece os ossos, se dilata e refaz o cerco,
gira e lá dentro a musa se mistura,
a estrela consome-a e diz-lhe no mais alto
que a língua tem soado:
"minha puta privativa e magra..."
Um verso cortado anos mais tarde
numa rasura rente ainda ao desejo,
como quem cheirasse uma flor que não existe.
Ainda não. E é tão incompreensível
que não agrade à vida o seu próprio gosto,
que o sacrifique e ao corpo antigo
ou às noites
que arrancaram as cortinas da memória.
E essa sombra que nos descose o sangue,
a luz que nos muda o nome...
Para resguardar-se do quê, cuidando de quem?
Toca assim a corda que lhe atravessa o quarto
cheio de sonora solidão,
toma a ausência dela numa xícara e acrescenta
(quase no fim) duas colheres de açúcar.
E o mundo persiste assim no seu reflexo
mais desgraçado.
Os amantes não se aproximam
não sabendo sobre que flanco devem atacar.


Sem comentários: