quarta-feira, novembro 24, 2021


Eu sou a inveja de uns quantos minutos,
de algumas horas na vida de outros, 
das luzes ao longe, desses sinos que dobram
de memória sobre lugares desaparecidos.
A mesa começa a ficar velha, range
com o peso de tudo o que foi escrito,
longas migrações, e a contagem daquilo
que não regressou. De roda de mim
anda esta luz fraca que me assopra a sombra
e a faz monstruosa. Lembra-me do gosto que tive,
de águas a que caí com vontade de me deixar ir.
De tudo isso, hoje volto e espreito como brilha
uma laranja num poço, sinto o estremecer
da quietude nesses lugares
onde morte natural não é coisa que exista.
É preciso que escolhas uma e que a faças tua,
e, se a queres leal, deve ser dolorosa.
Há um consolo a ser buscado entre as coisas
que podemos saber. Tal como o tempo
se enche de grumos, também os acasos
perdem os seus botões. Por isso nos aferramos
a coisas de nada, detalhes, precisões, 
apontando esses indícios fabulosos,
um zumbido que nos atravessa
enquanto escutamos o programa no rádio:
"... o colibri não é um pássaro comum,
o seu coração bate 1200 vezes por minuto 
as asas 80 vezes por segundo,
se parasse estaria morto em dez segundos..."
Este ser de nada, mais sombra que outra coisa,
que expansão realiza entre mundos
de que nem suspeitamos?
É evidente como o seu peso ínfimo
chega para afinar a mecânica celeste.
Enquanto bebemos outro copo
e o sangue mal nos aguenta,
ele estende a sua febre secreta
através do murmúrio longo e doce dos epitáfios.
No corpo, na roupa e na língua ficam-nos resíduos,
musgo, areia, vento e chuva, e em tudo isso
a floresta parece entoar o seu canto,
um ruído que tem algo de imaginário
e assim fica a ecoar na cabeça. Um dia,
até o nome por que nos chamam deixará
de funcionar. Se tivermos escolhido bem,
estaremos já muito longe para que nos perturbe.
Ir embora antes de as coisas terem acabado,
é isso o que fazemos.


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