quinta-feira, setembro 23, 2021


O génio é doce e triste,
tece o seu juízo leve sobre as coisas
com insectos vivos junto à dobra de água
afogando-se uma e outra vez no relevo
do que lhe passa pela cabeça.
Traz ainda um eco entretecido nos ossos
que quase lhe rompe a pele ao aspirar a noite
com odores de limão e louro
e asas de libélulas revolvendo o azul.
Ouve a velha canção do costume
e os rapazes conversando tarde
nas escadas espinhosas,
espiados com ardor
desde as janelas apagadas.
A embriaguez começa e ela
raspa da fotografia a cor mudada,
as flores mexem-se com a brisa 
e apuram o antigo perfume,
então a sombra fresca envolve-nos
e o coração dispersa-se como um sonho
neste tempo sem paciência para a carne.
Há sons pela casa, o mundo dá corda 
a si mesmo. A lembrança 
vai fabricando a sua pérola debaixo da língua.
Ela diz-me: acho que gostamos deste mundo.
Os meus dias são tão rápidos agora,
mal os une um sopro que seja
e por isso admiro entre os versos
esse pequeno ladrão, e guardo o tesouro
com o qual povoou docemente um deserto:
maçãs, cálices de absinto e maços de tabaco,
mas também lágrimas, gotas de morfina,
velhas anotações distantes, certos princípios
sobre a prática da arqueologia.
Como não preferir o escuro
e até a razão tombada por sombras?
Como de noite são sacudidas pelos astros,
enquanto por breves que sejam os seus assuntos
logo nos devoram a imaginação.
Outros olhos nos procuram mas nós
nem no pó persistimos. Parece até
que vamos já tirando um estranho prazer
de nada ter sobrado, de já não existirmos.

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