quinta-feira, julho 22, 2021

 

Porque de todos os dragões o mar é o menos selvagem
Jean Cocteau

Em vez de redacções, exercícios de escola,
chamou-me no fim, confiou-me em segredo
a tarefa, queria que cortasse da musa
o cabelo, pôs-me na mão a linha
com que te coso hoje no próprio corpo
um vestido mais escuro, feito de nadas,
listas de tudo, a biografia de Cleópatra
(como inventou as laranjas saindo da cama),
se o fizer com tanto agrado, desembaraço
ouve-se nos papéis, soa a algo apanhado vivo,
zumbidos, uma luz colhida, severa, natural
deves poder ouvir daí estas coisas, nota
como a abelha roubou o mel dos nossos ecos
também ensinei a rosa a assobiar
e com o passo ligeiro como um sussurro
expliquei às sombras da casa essa forma
que da loucura tira as medidas, fiz chá
de tudo o que não se julgava possível,
os lençóis que deixaste na corda, a roupa interior
por apagar, segui o contágio dos sonhos
pelos bairros adjacentes, falam aqui
de antigos trovões, águas invasoras
de como tremem ainda as casas
tenho o jornal sobre os joelhos e vejo
onde bebe cores a tarde alcoólica,
há uma legenda e a fotografia, rosto apenas,
as poucas estrelas absorvidas no cabelo claro,
devo ler o teu nome outra vez, ouvir-te ainda
resmungar, fazer a mala, sentir espalhado
pela casa o cheiro, ferir a mão no ramo e,
logo que abra a janela, da boca do pássaro
provar o fruto de um território desconhecido.
Mas que sei agora que tudo me foge?
Sei que esta luz não nos fará qualquer favor.
Nem a época é tão funda que aguente a vista
desde aquela varanda, ou a pancada do mar
repetida, como na terra a canção amadurecida
dos frutos caindo, cuspindo as sementes
na gaveta onde guardo os papéis e os cabelos.

Sem comentários: