quarta-feira, março 03, 2021


Tinha a água a correr, um azul forte nos dedos
na camisa de sempre, barcos desossados
dispersos por ali e o gosto da ferrugem,
a mesma tinta das lágrimas, a pele
de frutos, sementes, um postal antigo
onde alguém te lembra dela, algo
um apontamento épico entre coisas de nada,
a alfazema, mais forte do que o cheiro
dos cavalos e da coragem, esse ritmo
em que os objectos aprendem a respirar.
Levo fiado no que toca à perfeição,
coisas claras em meio a outras escuras.
A febre nocturna ajuda-me a ver o que vinga,
e em lugar dos meus, abria os olhos de Balzac
enegrecidos pelo café que bebia sem parar,
e o ruído à volta unia-se, rumores ligados,
texturas capazes de intriga e de recuo,
o que sobe desde as raízes do mundo.
A obra corria bem, levando ao excesso a frase
sem a romper, aprendera-o com Cézanne
com o próprio horizonte a deslocar-se, mas
faltava o corte, dominá-lo, ferir pondo o vazio
entre as coisas, se tinha um grito dentro
havia que extraí-lo, dente a dente, 
impus-me um crime por ano, em média,
no dia seguinte lia os pormenores
numa espécie de jornal, mostrava a alguém
e então ora nos encantava ora se punha
a dar-nos corda o arrependimento,
vinha então a chantagem da moral,
e com que penosa lentidão, por que etapas
se demorava antes de nos deixar, isto
até as lembranças caírem noutra ordem
os sentidos se imporem, mas se antes
tínhamos ideias confusas, a vida, a vida!
sempre esta palavra na boca, agora
preferíamos os assobios enredantes
das grandes florestas, rios escondidos,
esses lugares que se tornam teus cúmplices
na hora de te livrares de um cadáver.

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