sexta-feira, dezembro 25, 2020


Diante de nós, o fantasma de um futuro que não veio, sinais de um trânsito colapsado, ecos perturbadores, a própria avaria dos instintos à medida que a fome abandona os corpos e uma leve curiosidade os inspeciona numa apressada autópsia. Ao redor, globos planetários de luz fundida, museus de coisas que já ninguém quer, o próprio desejo ferido de morte parece um rádio que só capta frequências extintas, o último calendário impresso com as páginas embolorecidas, revistas de moda, modelos em poses que, hoje, nos parecem ao mesmo tempo absurdas e fantásticas, a devastação patética de uma cultura que ruiu em menos de nada, toda a sua exuberância denotando problemas de respiração, e, depois desse soluço que engoliu tudo, a arte que nos resta é uma forma de profanação, uma sátira de que o antigo mundo estava grávido sem o saber, desatando-se dos escombros, somos as vítimas e, no entanto, temos pena dos nossos carrascos, ninguém imaginou o fim como uma suspensão drástica do sentido, da capacidade de narrar, todas as histórias deixadas a meio sem que ninguém tivesse para com elas uma réstia de comoção, o suficiente para lhes dar um pouco de corda, algum gesto que pusesse fim ao seu sofrimento, uma morte piedosa. Quem adivinharia como os próprios poemas funcionavam na base de um mecanismo qualquer que podia avariar como um banal electrodoméstico. E os relógios parecem ter fixado o mesmo segundo por toda a parte, no seu acerto cego, deram um último passo não suspeitando de nada, e depois só esse espanto parado, este súbito estupor diante de tudo o que até há pouco nos tinha entretidos, a própria História perdeu repentinamente toda a profundidade, a grandeza e o pavor, a realidade resumiu-se a duas dimensões, umas poucas cores, e depois, algo pior, é a sensação de se estar num corpo que é em si mesmo uma forma de asfixia, tendo-se generalizado esse distúrbio dos que se livram da vida como de uma doença, dos que se ferem ou auto-mutilam, dos que não acreditam nem na dor, e, tomados de uma ressaca brutal, é como se tivéssemos perdido o sentido da fala, ou até da tradução, tudo fica pelo caminho, misturado ao arrepio de atravessar assombrações ilegíveis para nós, pôr os dedos sobre sinais que sabemos dirigidos a vindouras presenças, uma reserva ameaçadora de signos, paisagens que pretendem livrar-se de nós, sombras meditando corpos em falta, a sensação de que estivemos a criar um mundo de obsolescência, até o horizonte ceder, tornando-se ele mesmo outra carcaça, um cemitério de estradas sem regresso. Para lá de um certo ponto, o futuro já não tem em conta o homem, mas o mais estranho é como o passado também se recusa, impede-nos a passagem. Entre nós e as palavras, entre nós e o mundo esta fractura: do tempo e da razão. Ou da urgência. E nós, os que por fim herdámos a terra, vemos toda esse pele largada, os lugares de onde se sumiu toda a graça, todo o encanto e ilusão, deixando-nos emparedados.


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