sábado, agosto 22, 2020


Com García Lorca

Entre cães apagados,
nesse murmúrio que se cobriu de ervas
onde o campo morde o próprio rabo,
temo-nos visto, cruzado em diferentes papéis
fingindo que somos mais, correndo
pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados,
honrando homens cujo esqueleto lhes soou
e o cantaram, aquele ali, mais fino, galante,
apontava tudo o que o sul nos dissera
este que eu faço perdia logo as estribeiras
procurador-geral das antigas mesas de café
ela, mais velha, cansada, sabia muito e sorria
caímos juntos pelas escadas
de tanto nos amaldiçoarem,
mas que importa se vimos os telhados
que a lua levantou,
a velocidade das últimas bicicletas
dá-me saudades a morte que foi daqui faz muito,
de tão poucos, lancinante,
tinteiro entornado, negros corpos minúsculos
trepando em haste, e os instintos,
as formas, leves, como mariposas dissecadas
tudo o que pecou por excesso de luz.
Mas e agora? Experimenta, pergunta-lhes:
a que sabe o sangue se não perdeu o gosto
indaga, erguendo um pouco a cabeça escura
que guerra me trazes
que tempo ainda nos olha dentro?
"Amante da música de loiros cabelos",
como outros, vejo agora que ao desejo
restou para contentar-se o corpo do fim,
não há noite aqui que nos chegue
e só o que se esquece num copo talvez
ainda germine obscuramente,
o fruto abrindo-se na memória,
rasgado com os dentes
deixando cair as sementes, e então a brisa
entontecida contra este "esqueleto de tabaco"
empurra-as, mistura-se terra e água
e dentro voz e força, ela
com feridas nas mãos, anotou a receita,
sabia quanto do quê, de ventos, canto, mirra,
os ingredientes com que ressuscitar
um dia a raça das abelhas,
quando soubermos para onde iremos.


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