segunda-feira, janeiro 20, 2020


Vá, conta-me a história, não toda, mas um pedaço, um reco de rolha cuspida, nem longe eu espero, mas põe corrente nessas águas, faz o que podes, de tímido a um desses crápulas cheios de si, passa-me o parágrafo mais longo, o mais cobra, acumulando peles, e os furos, o tintim por tintim, demora, tira o sangue, põe o coração o mais longe que dê, esvazia o bar, passa a limpo, de todos esses guardanapos, a ressaca, faz como se fosse uma viagem só, tira a limpo isso da noite, e do fundo, nós ouvimos daqui, por isso, fica com os músicos, arrumando as partes dessa canção que não termina, tu onde não te distingues, e essa história toda que não tem começo nem onde cair morta, felizmente parece que tem andado à nossa procura uma certa calma, um espaço que vagou, as cadeiras ali, sem nada, chegam bem, são audiência que baste, somos suficientes, revezando, o rapaz limpa os copos, parece um ensaio isto, também aqui, o ritmo a fazer mira a algo que se levanta não se sabe de que memórias, as flores que ficaram no lixo, o bilhete, posso ligar amanhã?, e não é que ligássemos, mas combina-se amanhãs sucessivos, para saltar de um remorso para o outro, fazer comboios, conforta a ideia de que alguém meio que espera, entretém alguma dúvida, e tu que até te perguntas, se ligo vou dizer o quê, posso ler o meu texto, fingir que é uma carta, virar o copo, desafiar-me a isso, inventar e dar cabo da minha própria Felice, até me aborrecer, pôr um fim agonizante, desesperá-la, com a impressão do romantismo ganhando ímpeto para se esvair com uma mão dentro das calças, e volto à cadeira, balouço-me, que belo sacripanta, admiras-te?, pode ser que a frase seguinte te salve de ser isso sem nada, desculpa nenhuma, daí a esperança no ritmo, a inveja dos músicos, daquela intimidade do muito coçar, mas alto, desafiando comichões que nem se imagina, suponho que uma perseguição dessas os livre de coisas piores, esses actos escrupulosos que envolvem sangue e geram um pavor do caraças, mas outros já antes, e melhor do que eu faria, defenderam esse rumo como uma das belas artes, e então, vejamos, o que nos resta?, ou melhor, que acontece a seguir? O que eu detestava que mo perguntasses, que a própria interrupção não fosse o bastante – até aqui, o dia, estava a ir bem? –, um bom leitor, se o Estado tiver paciência de nomear um, pode funcionar como um agente da liberdade condicional, alguém que vela, nos pede para encher copitos de urina, quer-nos ver reintegrados, o cabrão, e já ouviu todas as desculpas, por esta altura está a ficar maçado com a ladainha, tento entesoá-lo com o livro sobre nada, declinações, que lhe interessa o que levo no sangue, não há leituras que batem muito mais, têm tantos mais cascos que o cavalo? Mas que lhe interessa, calado, com o modo como os olhos revistam a frase, cai para este lado o sermão, como me vens repetindo essas tretas sobre disciplina, um plano, e me mostras gráficos, o descaramento de me vir falar em vendas, porra, que padrão para quem saiu para os descobrimentos, terá o gosto ficado para rato de porão, talvez nem tenhas considerado bem, mas agora é isto, toda a gente dá conselhos, e eu, pesado como me ponho, bato cada palavra, que hastes altas estas putas têm, ando por ali, entre pernas e saias, debaixo das mesas, que outra perspectiva, e custa-me ao dizeres que há sangue no modo como as conto, eu que nunca quis cair no regaço da história, antes ser um criadito com um parafuso a menos e a quem fossem toleradas certas tontices e patifarias, por respeito à mãe (coitada da senhora), mas confesso-te que, vens-me com isso, e sinto-me a escorregar. O que querias agora? Que estivéssemos a saltar da caraterização do nosso protagonista, e da família, um outro amigo, para o entorno social, a ampla gestão de um complexo epocal, foda-se, não me faças uma coisa dessas. Não é descortesia, até porque a incapacidade para a delicadeza, o apuro de um detalhe que fique deste lado, puxando-te a toalha da mesa, atirando pratos, copos, talheres e tudo no chão, é minha, é, e não estou a ver grande compensação, mas cá me tens, incapaz de uma cena escorreita entre a sombra que faço no papel, o gelo no copo, a janela, o tempo sem costura da lua e do sol, não posso fazer melhor, não consigo tirar as distracções do caminho, sigo-as, ah que coelho, todas, mas e eu quem sou enquanto as persigo, e se tu vens, o cajado está na minha ou na tua mão? Antes fôssemos rapazes, mas dos outros, sem especial respeito por si mesmos, atrás dessas mulheres baixas, magras, indesejadas, mas que depois, ao seu jeito, com um certo encanto imprevisto, se revelam capazes de dar cabo de nós. Há uma que me aparece nestas alturas, esfregou comigo o inferno, deixou-me doenças inventadas, dessas de fugir de toda a atenção médica, suores frios de escavar na cama com uma colher de chá, mas se quiseres eu digo-te o que foi, como se a visse numa linha entre outras talvez fosse a última, como a princípio não trocaria pelo dinheiro para o lanche, mas que espécie de fungos se nos dão nessas partes de nós alheadas, como as feições pareciam mais delicadas de cada vez que mudava de opinião sobre qualquer coisa, como tudo a encanta num segundo e logo se desinteressa, como quer que a fodas como faziam outros, como ter ao lado das tuas as linhas que outro escreveu e que, tendo vivido o mesmo, tirando mais, te humilha. Não é bom se nos mantivermos à margem das antigas ambições, até para que nada de respeitoso ou elevado nos interrompa e possamos ser cruéis como há muito não se via nestas lides, sem pestanejar, sem nos justificarmos? Era uma pergunta. Já vamos em quantas? Se não for assim, façamos então ao teu jeito, até podemos mudar-nos, ir viver do outro lado, onde nos olham sem a menor ideia, não se pensa mais nestas coisas, não deixamos nem uma morada ou contacto, vamos ver quem aguenta sem se desmanchar, espiando-nos mutuamente atrás de impecáveis bons modos, a acenar uma vez por outra por detrás da nossa espectacular falha de carácter. Essa merda aí fora está cheia de heroísmos desesperados. Abençoados calhamaços provando a tenacidade e virtude desses tipos erguendo as suas catedrais aos mais improváveis dos deuses. Se eu fosse mais nobre, invejava-os. Mas preferia anotar no canto de uma folha a sórdida combinação de palavras que fizesse jus ao que eu gostei do vestido dela... Se por ti íamos mais longe, se tens fôlego para muito mais, é porque não estamos a falar da mesma coisa. O que te posso dizer de mais seguro é que as leituras a que sinto os ossos são essas que sabem como retiradas, recuos já sem estratégia, sem hipótese de reagrupar, de impingir alguma coisa aos homens, fingir que ainda lhes resta alguma moral. Contam-se as armas apenas para que cada um se garanta uma saída misericordiosa se as noites não o largarem. Tive períodos em que não saltava uma. Quando já não podia mais, ao fechar os olhos, sentia os cães dela a buscar-me pelo cheiro. Não demorariam muito. A saída é voltar-se contra si mesmo. Incapazes de perdoar, entre as memórias não há grande revolta, apenas desdém por quem fomos, e mesmo por quem se cruzou connosco e se lembra, nessas alturas até nos teve afecto. As histórias levam-nos um pouco mais longe cada uma, até não podermos mais fazer sentido, tomando-o como uma traição. Nas melhores alturas, calaste-te bem calado. Lias à distância toda de quem já conhece todos os finais. Não sabes o quanto me arrependo das outras. Era isto. Aproveito, e dito-te o que lhe disse: “Se não nos virmos por aí, imagina o melhor. Estarás errada, mas ao menos fazes-me esse grande favor.”

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