sexta-feira, novembro 01, 2019


Enterra um chapéu até aos olhos, já não para que te dê um certo ar, distinto, mas como um princípio de desaparecimento, e até para que, de lá de cima, não se possa seguir esse pobre remoinho, seria mesmo bom apagar-se dentro de um sobretudo cinza, acabam-se as desilusões, o resto é triste, e aborrecido, mas sem importância, tudo é um filme que já se viu, e ainda que não consiga recordar quase nada, o cansaço toma conta, está tudo confuso, põe lá algum sentido nessa merda, não tens feito mais do que esconder as tripas num dicionário, enrolar de volta as mesmas noções imundas, a olhar para o copo que tens na mão como se tivesses escolha, dissolvido como veneno, aí estás, tremes, suas, um só trago inútil não irá devolver-te a clareza, emborca lá isso se, por um segundo, te fizer duvidar de que temos mais alguém lá fora, se tivesses condições, se alguém se importasse, talvez tivesses algum para estoirar, e tenho umas sugestões, quero um historiador aqui, a garantir que a coisa bate certo, fazer o levantamento, meter alguns calhaus a ressoar sobre a linha do tempo, isto pode bem não ir a lugar nenhum, mas não te faz mal teres algum respeito por ti, fazeres vozes, aprenderes alguma coisa nas legendas, esta porra toda ficou demasiado cínica, nem o Joyce com aquele infinito braço-de-ferro, aqueles parágrafos cheios de histeria e nervo seria capaz de trazer vida nova, espetar uma vez mais a cabeça do leitor na mesa, cuspir-lhe pragas no ouvido, o leitor é um escroque, de todo incapaz de formar um juízo por si, tão contente por ter o seu papel numa fraude, e a tempestade não quer saber disto para nada, mais valia que escrevêssemos com os nós dos dedos, burilando, ritmos rituais com deuses em fundo, fizeram disto mais outra profissão, e até nos livros estamos uma vida inteira à espera que o autor se decida a começar, que trate de uma vez o assunto, não estique, não se ponha com vocalizações, andando à volta, puxando cadeiras, fazendo prólogos, e deste lado, "onde é que já li isto?, como raio é que ainda não nos vimos livres desta gente, não desertámos de uma vez por todas, atraídos sabe-se lá com que pretexto, porquê toda esta benevolência numa hora em que se avista o fim e o que nos serve de terraço é uma pobre e tão triste coisa, talvez explique esta busca de alcoóis dissimulados, tretas licorosas, umas pífias ebriedades, pequenas vinganças, mexericos grotescos, apontamentos de viagens absurdas, as mesmas terras de sempre misturadas pela demência, e, como acompanhamos o último acto já sem a menor paciência, um rumor indiferente, como se fôssemos pedra, sujeitos só a infiltrações, ritmos que fazem esquecer a carne, vamos acabar com isto, já vamos, estamos sempre a ameaçar, como virgens mexendo em frascos de comprimidos, e é tudo, às vezes com uma música melhor, com a distância entre as coisas e nós próprios a crescer, esperando que o poema afogue os sentidos, dilua nessa água friíssima alguma coisa com vida e luz, até talvez uma estrela menor.

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