quinta-feira, setembro 26, 2019

Soldados gratuitos


Prosseguimos as buscas, e estas exigem-nos, na verdade, um combate, um exercício desesperado para arrancar a página escabrosa, um crime inesquecível, que impressione, mas, mais que isso, macere, convulsione, degrade a imagem que fazemos de nós próprios, uns dos outros, rancorosos ou dóceis, imbecis sempre, muito ou pouco, pois não passamos de um amontoado de miseráveis, e o que é preciso é dar cabo de toda a confiança, essa ilusão malcheirosa que está em toda a produção da época. Mais valia que rastejássemos, sem dignidade nenhuma, talvez até um pouco menos emproados. Mas como notava o mais maduro, “nós nunca mudamos: nem de peúgas, nem de donos, nem de opiniões, ou fazemo-lo tão tarde que já não nos vale a pena”. E depois, quando se tenta tocar esse fundo sensível, ainda há a carreira dos malentendidos, essas leituras apressadas, e não chega uma vida inteira para que um tipo se liberte das acusações mais vulgares, as que primeiro vos sobem à boca, como o escarro que subjaz a almas sem treino nenhum. Neste vosso inferno, chapinha-se, não há profundidade nenhuma mesmo que passasse pela cabeça de alguém afogar-se. Essa ideia que de mim fazem, não me parece que esteja errada, apenas peca por ser simplória; um mal que se esforça, e não essa sujidade que resulta das vossas tão fracas convicções e ainda mais débil talento, assim, o que aborrece em tudo o que me chega desse monte de carcaças é como recusam olhar-me mais fundo, pelo receio de se encontrarem a si mesmos, verem-se espezinhados. Tem de se destruir o outro tendo-se abismado nos limites de si próprio. Como avisava Valéry, temos de entrar em nós próprios armados até aos dentes. Pois de mim eu sei bem o quão magoado estou, e resulta disto que sei magoar. Mas que me venham com ofensas cheias de mofo, em tão maçadoras redacções escolares... e o que custa mais ainda é ver como lêem livros, documentam-se. Armados, que vontade de rir, se a ponta que cospe fogo parece levantar-lhes dúvidas, e se estão mais à-vontade com as trombetas de que logo puxam a rolha, a única ameaça é a facilidade deste em render aquele, como se diluem uns nos outros, repetem as mesmas queixas, com idêntico estrépito, e se algum perigo resulta disto é o seu prolongado cerco, fastidioso, pois não há sítio onde não estejam. Depois, e mesmo que sigam admiravelmente a marcha do pelotão, que tiros nos pés, que barracadas, que sucessão de falhanços nos servem estes “soldados gratuitos, heróis perante todos e macacos falantes”. Atacam violentamente no coro, e a sua estupidez soa cortando o avanço até a um incêndio num campo seco com a chocarreira música da sua secção de cordas, dominada pelas cigarras. Estão na mais perfeita sintonia com a impostura, e, por isso, as suas consciências parece-lhes que rimam com tudo o que têm à sua volta. É tão fácil ir buscar outro, revezarem-se nos seus postos, como um corpo que se deixa sacudir pelas suas pulgas, e se chega à frente, qual moribundo disposto a ser estripado, como se nada fosse. No fim, como se recarregassem, continuam todos a admirar-se mutuamente e isso basta-lhes. Trepam a esse céu onde nada brilha. Lá vem este grunhidor que mal se distingue do último, lá vem com a conversa do moralista, do que se julga impoluto, quando há muito que o que aqui se foi dizendo é que só me orgulha ser bem pior do que possam imaginar. Lá vem o chinfrim de frases que, de tão buriladas, se recortam e abrem como grinaldas, enfeites de festa, bandeirolas, e fazem as suas caretas, cumprem o serviço obrigatório em nome de um destino do qual há muito me desembaracei. De Ponta Delgada mandam-me um sicário zarolho, mais outro que me vai fazer a folha, e lá vem ele com umas considerações muito gerais, uns planos de prevenção, cuspinhando umas sentenças que qualquer um podia ter baixado a escrito numa sebenta, mas sem nada que se sinta ou resolva interiormente, uma só gota de veneno certeiro, e logo fica claro que é mais um que puxa o lustro, faz entrar o processo com uma lista de provérbios inúteis, mas sem uma só linha admirável a impor-se-lhe, quase a estrangulá-lo. E, então, contamos com mais este aguarelista insular, contente por ser incluído nos turnos, vir “fortalecer muralhas”, como diz o imbecil que afixa o calendário e trata da rotação do pessoal. “Gritando de cio, desabam os telhados”, assegura-nos aquele redundante magarefe. O certo é que cada vez mais os ecos mais furiosos de qualquer razão inventiva não têm já cabimento se zurzidos contra este quadro mental em que chafurdamos. A literatura é, entre nós, um resto. Uma coisa tremendamente desolada. Tantas vezes saqueada... Tudo o que se quis evitar culminou nos nossos dias e o vazio encharca-nos. Faz um frio que nos deixa tiritantes, e, mais do que quaisquer outros, parecemos ser nós os filhos daqueles que quiseram fugir e não puderam ir mais longe porque o mar não os deixou. Sobrou uma hipótese: a fuga da própria vida. Escapar-se aos sentidos, até ao último. Assim se explica esta espécie de bebedeira, o estupor geral: “Para o alcoólico a água pura é um veneno. Odeia-a com todas as forças... não a quer ver à mesa... ele quer bosta engarrafada. Em filmes, em livros, em tiradas, em canções de amor, em mijo...” E, nestas condições, mesmo aquele que aspira a um acto infame é tomado por um “moralista”, alguém que ambiciona tornar-se o senhorio na morada da salvação. Ora, este género de confusões e inanidades são próprias de um tipo de escriba para quem já nem as palavras prendem o menor sentido, e não passam de gases modulados por um instrumento que se toca de forma sofrível apenas para entreter os beiços. Estamos, assim, muito para lá do bem e do mal, num território onde esses velhos conceitos são esgrimidos da forma mais ociosa, e chegamos a sentir nostalgia de tempos em que se falava do meio literário como um campo propício a esses espíritos capazes de ordinarices espantosas, de uma “maledicência absoluta, fanática, máxima, do mexerico furioso, mesquinho, da bisbilhotice delirante”. Apenas temos para nos coçarmos fantasmagorias sórdidas, ausências pesadas e que ressoam nos nossos espíritos como uma maldição. Nem somos já essas tristes coisas vis que provocam o nojo, mas apenas existências desnecessárias, e que se agarram, não propriamente à vida, mas a isto, sendo que, intimamente, reconhecem o favor que se lhes faria pondo fim à sua miséria. Neste estado de coisas, é de uma perfídia assombrosa alfinetar essas ilusões, expor esta enorme e permanente velhacaria. Pois é esse, no fim de contas, o fio que vos prende à vida.

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