segunda-feira, setembro 23, 2019


Numa linha só, desperto, o nó desfeito, a corda na boca, e para escapar falavas a língua deles, dores que combinam com a subtil emboscada de uma paisagem, até gostares, pela hipótese de vingança e por ser mais fiel ao terror que agora te alimenta, admirá-la como apenas um estrangeiro pode, entreter-se com a descrição de mapas (as descrições em geral são uma forma de hipnose), valas, serras ásperas, dunas, os espaços retorcendo-se com a indisposição própria da gramática, o gole de um copo deixado algures com travo de navio afundado, os corpos a dançar lentos com os peixes... Ouves-me? Cheio de uma culpa apaixonada. E que água escura, tão densa de reflexos, que rostos nos espantam, que frases, a escrita que se arranca, sem cortes, sem truques, esgotando cada pedaço de papel, numa página corrigida de forma insana ao longo de anos, quase ilegível a cada linha, de tão fria, tão pesada. Que importa se nada canta tão claro, deixemos-lhe mesmo essa tapeçaria de escombros, e que lhe custe tanto a ele, pague o mesmo preço, levante com a própria carne estes ossos. Por mim, já me acabo aqui, e imagino que te cubra com o seu pó um tempo meditado, um tiro dividido por quantas bocas. O que muda, perguntas-me, ou de que vale? Agora, encolho os ombros; mais tarde talvez me ocorra que o sangue acaba por mostrar-se mais atento. Mas não vejo nada de recomendável. Nunca aconselharia porra nenhuma a quem não estivesse já perdido pelo mesmo caminho. Detestável essa coisa de tomar os jovens por outra coisa que não um eventual inimigo. O formidável antagonista que te obriga a rever tudo, a desejar ardentemente a razão de quem regressa ao zero. Qualquer outra razão é um desastre. Disseram-me outra coisa. Fizeram-me as recomendações mais firmes, desde o não te distraias, e, é claro, o não percas o tino, não te deixes encantar pelo ódio, não te desvies por coisas sem importância, mas ouvi-os dizer quase o contrário: acende tudo o que possas, usa a luz toda, a que se integra e se alastra rangendo; de cada nesga, candeeiro de rua, do ínfimo fôlego de um fósforo, enche-te o mais que possas porque, se lhes trazes o susto, invariavelmente, apagam-te a luz. Não esperava era que se metesse pelo sono, um raio estremecendo tudo, sob a pele, onde a carne assume expressão contra o mundo, os sentidos desfeitos por essa intermitência desoladora, até que a cabeça te seja um peso oscilante, estranho – dê vontade de te livrares dela. Quieto. Emudecido e subalimentado, que figura se faz, tomamos nota então das parecenças com todo o pobre diabo, e o que ouvimos contar regressa com as sombras do avesso. Nestas horas, se a distância nos medisse em seixos, galhos, unhas, cada caroço roído pelas voltas do sangue. Se lhes tocasse a noite como a mim, que atalhos, que modo de se sentar sozinho à mesa, deixar vir as marés, comer-se o defunto que se abriu em gomos, esta árvore caída que te deu a tangerina mais escura. Nas unhas, o gosto amargo que torna a mão próxima de outros ciclos. Que outro mundo assim debaixo das unhas. Mais acima, junto das mulheres, dobrar o rio sobre o joelho, ouvi-lo escorrer, secar-se numa toalha, escolher um quarto, segui-la. É uma pena que tenham limitado tanto a lista dos amantes. Que crimes te chamam a ponto de sentires o nome sujo, inspirado, o tocam como de um violino podre se raspa uma nota viva, cheia de intimidade dolorosa, o oco, o infinito sonoro, esse ritmo revolvendo-te o juízo, como um livro onde uma rosa deixou o seu murmúrio, e, porque não me deixa ouvi-lo, dou veneno ao cão e ladro eu pela vida inteira.

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