sexta-feira, julho 12, 2019


Falei baixo um bom tempo como qualquer outro parasita celestial, e hoje é nesses pontos onde começo a desaparecer que encontro margem para algum resgate, como o bom velho que achei num estrago espalhado e me dizia, "Quem me partiu foi o meu espelho." Deus tornara-se já, por esses dias, um assunto obsceno. Podíamos passar fome de outras coisas, a vida incomodava-nos tanto que a havíamos assumido como uma tarefa qualquer, como arrastar-se tendo uma pata em cima, e não por um orgulho imbecil, mas porque depois de um certo ponto é mais fácil ir contra o mundo ajudando à nossa destruição. Como se perde o próprio nome na boca de quem nos olha não como a um ser só mas uma praga. Estar com as sombras, com as marés de tinta, na troça ou nos resmungos, também no grito dos autores desconhecidos, todos esses dons dizimados, vozes por detrás da parede, e flanquear a noite. Depois é o que se sabe, como o raro talento se sente estúpido, pede desculpas e se ausenta quando o seu eco ainda só rodeava a mesa, antes de se sentar e dominar a conversa, ferido por esse peso das frases deixadas pela metade, a prosa que nunca quis nada com a medida justa das coisas, mas se deixa prender ao balanço, a essa escura ferrugem actuando no limite das coisas, algum esbanjador admirável a gastar-se em nome de uma úlcera, a desfraldar-se todo, com o alcance de um marinheiro, cuspindo a voz num seixo sobre a água, e o chape-chape voltando para terra, pedrarias mas sons, desses de nos arrastarem para o fundo com eles, navios fantasmas numa espécie de convalescença melodiosa, uma imagem que te trague e te roa até ao fim do esqueleto, cuspindo no fim uma estrela, eu tenho de devorar-me e cuspir quantos caroços até que o sentido me deixe de vez e possa reclamar-me rei do absurdo. E ainda ler aí outra coisa, o que a mosca ouviu da rosa, e mais, mil bagatelas, entreter-me a dar-lhes razão, inventar uma ordem, esse espanto ao aspirar de uma vez o cheiro de tantos dias em pó. Num idioma em tumulto, como se sabe, cada palavra ouve outra coisa, cada frase tresanda, e ninguém imagina antes de a proferir onde dormiu, bebendo do quê. Entregamo-nos a demonstrações de delicadeza sem nenhum propósito, esse desastre que nos arranca aos cansaços de que o mundo se governa. Depois do fracasso é que as revoltas se tornam boas para música, parecem compor com alguma tempestade rente aos ossos, deixando o velho reino como a um cemitério, o real com as suas batalhas intermináveis e triviais, esses motivos e horizontes intragáveis, e ainda todos esses versos lacónicos apanhando "as beatas da existência", preferindo antes o veneno de ratos, este alimento hoje inadiável.

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